O homem mastigado diante do
estandarte
Alguns
chamam de maldição, outros de loucura ou dom. Tudo depende do medo, do
ceticismo ou do desejo que envolve poder ou não poder experimentar essa dupla
natureza. Eu aprendi a entender como um
presente, que devolve o que com frequência é roubado da vida. Ver e ouvir o que
poucos conseguem, certamente, pode tornar-se loucura e maldição ou sentir-se
como um dom – aquilo que se recebe sem pedir ou merecer - e ao mesmo tempo um
presente – aquilo que proporciona júbilo ao se receber.
Revelo logo
aos leitores: meu dom e presente consistem em enxergar aquilo oculto no instante
da morte. Entretanto, como são poucas as mortes que já testemunhei, pouco vi de
diferente do estado comum da natureza objetiva dos seres. Posso assegurar, contudo,
que vi e aprendi, observando, algo quase completamente diverso do que narram as
simplificações dos sistemas metafísicos.
Ainda agora
enxugava as lágrimas de meus olhos. Vim a meu caderno de anotações para
registrar este relato envolto em profunda e sincera comoção. Das mortes que
observei, essa talvez tenha sido a mais vertiginosamente doce e inesperada, fabulosamente
triste e bela, e, sem dúvidas, deixaria desconcertados muitos que estudam com
minúcias esse tema que fascina e faz temer a humanidade.
Seu nome,
idade, procedência e intimidade: desconhecidos. Tudo o que foi resumiu-se por
mais de 7 anos na vizinhança pela alcunha de o “louco-da-praça”, um louco
manso, calado, quase uma figura veneranda. Sua pele sempre se viu escura, bem
escura de sol. Seus cabelos, bem espessos e ondulados, quase chegados aos ombros,
nunca foram flagrados em desaprumo - um pente pequeno de plástico que saía do
bolso logo pela manhã se incumbia de alinhá-los.
As teorias
sobre seu passado eram infinitas, mas uma perseverava verossímil. Quem contava
era uma senhora que se via semanalmente na praça levando-lhe uma ou outra muda
de roupa, um cobertorzinho gasto de vez em quando e algumas frutas.
Sua
narrativa dava medo e fazia que ouvidos pouco habituados a escutar atribuíssem
a ela o adjetivo também de louca.
Ela uma vez
me narrou a saga do louco, sentada ao banco da praça do qual há pouco saí. Naquele dia, eu estava
ali doando uns sapatos a ele, sapatos que foram meus e certamente lhe sobrariam
nos pés.
Disse-me a
mulher com tristeza:
- Vê o
louco-da-praça? Sabe por que ele é assim, por que está aí? É porque a mãe o
mastigava, o engolia e depois o regurgitava. Voltava então a trazê-lo à boca para o
malfeito mais uma vez e sempre assim por diante. O pai, por sua vez, não o
mastigava, mas o via sendo mastigado, portanto o mastigava de um outro jeito,
de um jeito doído e infinito. Quando o louco ainda não era louco, aos 14 anos,
o pai chutou-o para ser mastigado também pelo mundo. O que resta a quem é
mastigado todos os dias?
- O
louco-da-praça, se está assim, depois de tanto, ainda está no lucro.
O que lhe
sobrara da vida humana era o asseio. Em tudo muito limpo. Usava uma torneira ao
lado do bebedouro, perto da lagoa do parque, para higienizar-se. A velha lhe
provia sempre um toco de sabão de coco. Ele nunca aceitara sabonete ou xampu.
Fosse na
Índia, teria o status de um iogue; ali, era o louco-da-praça – também o
louco-do-parque. O ascetismo fora dele uma escolha?
Seu abrigo
era de um papelão que vez ou outra se renovava. Cobertor e jornais isolavam-no
do frio. Ao que parece, sabia ler, mas não lia; sabia falar, mas não falava;
escutava, sim, escutava. Os meneios de cabeça e olhares mostravam sempre
lucidez quando, por algum motivo piedoso, lhe dirigiam a palavra. O
louco-da-praça era pacífico. Quem o olhasse com atenção encontraria também outros
adjetivos. Diriam-no limpo, doce, invulgar, íntegro, resignado. Talvez até
dissessem que ele não era da praça nem era louco. Mas nunca ninguém disse,
tampouco eu, tampouco a velha que contava dele a história.
Certamente,
o louco-da-praça só podia ter sido mastigado, mastigado com voracidade e
inclemência, de um jeito que ninguém merece ser.
A pracinha
onde morava ficava no caminho para o grande parque do bairro, bem perto mesmo.
Tinha um só banco, o banco onde me sentei às seis e meia de hoje para amarrar
meu cadarço antes de ir ao parque para caminhar.
Assim, foi
exatamente ao erguer a cabeça e me preparar para erguer o resto do corpo para
retomar meu percurso que meu triste e consolador presente se apresentou com uns
sonzinhos estridentes de pandeiro. Olhei ao redor no intuito de encontrar quem
o tocava, mas nada. O som era tão próximo; diria que quem o tocava estaria a
meu lado. Olhei então em direção aos papelões do louco-da-praça e entendi.
Seu corpo
ali estava completamente estendido, rijo, sem viço.
Tudo que
narro agora, leitor, ao que me consta, só eu vi e ouvi.
O som do
pandeiro foi se distanciando de mim e indo em direção ao louco. Uma carroça – e
agora via com nitidez – aproximou-se do corpo inerte. Desceram músicos, um
homem com estandarte e mulheres a dançar e rodar. O som era festivo, envolvente.
O pandeirinho cheio de fitas coloridas amarradas se via na mão de um rapaz,
quase um menino. Os lenços revezavam-se indo do alto ao nível da cintura das
mulheres, levados pelos dedos adornados de anéis dourados. Era uma celebração à
vida nos primeiros momentos da manhã, numa pracinha esquecida da cidade
indiferente.
Uma mulher
matrona, sem acompanhar a dança, saiu então da carroça. Mesmo a distância, era
possível ver-lhe o sorriso. Aproximava-se do corpo morto do louco-da-praça.
Nesse
momento seu rosto cobriu-se de gravidade. Com um gesto aos músicos, fez que
cessassem o clangor dos instrumentos. Três passos à frente, o homem que
carregava o estandarte aproximou-se, colocando-se frente aos pés do
louco-da-praça. A impressão era de que mostrava a imagem ao morto que,
obviamente, nada enxergava. Ficou ali solene.
Todas as
atenções eram agora para a mulher que se debruçava sobre o corpo tão só daquele
homem que sempre fora tão só, pertencendo à pracinha e, como folclore local, a
todos, sem nunca sentir pertencente a nada nem ninguém. A mulher então colou
sua testa à dele.
Aqui, caros
leitores, preciso admitir: seja lá o que tenha sido, aquilo foge-me
completamente à compreensão. Por esse motivo, cederei as próximas linhas a
outro narrador, o Universo. Acredito que, somente assim, tudo ganhe o sentido
necessário para se compreender o motivo das lágrimas daquela cigana, as quais
praticamente lavaram o rosto morto do louco-da-praça.
Daqui,
portanto, deixo-os com narrador melhor.
A cigana
colou a testa na testa do indigente, inspirou fundo. Foi o que bastou para ver
seu passado e senti-lo em sua própria pele. Quem pudesse ver as cenas diria que
desde criança aquele homem fora mastigado, engolido e regurgitado por sua mãe.
Beliscões não lhe faltaram no berço. Berros para calar-lhe o choro infantil
eram um eco frequente em sua cabeça. Empurrões, apupos, xingamentos, puxões
vorazes de orelha. Arranhões, surras de fio, pisões nos pés, nas mãos, no corpo
contorcido. E o pai a ver-lhe percorrer o calvário, a ver-lhe dependurado na
cruz quase todos os dias.
O menino era
“feio”, “burro”, “um verdadeiro idiota”, “um maldito estúpido”, “um doente
incapaz”, “um peso”, “um boçal”. A
cigana chorava fundo sobre o menino-da-praça.
O pai então
um dia trouxe-lhe uma caixa de engraxate. Que o infeliz ao menos valesse
algumas moedas por dia.
Valeu muitas
moedas, mas nunca o suficiente para amainar o ódio da mãe.
Aos 14 anos
cansaram-se dele, e ele ganhou a rua, ganhou o mundo; e somaram-se às próprias
dores outras dores do mundo, daquelas que não se poupam nem nas praças diante
das catedrais das grandes metrópoles. Algumas ironicamente faziam parecer que
as violências dos pais tinham sido corretas e na dose suficiente para prepará-lo
para as verdadeiras dores que representavam a vida. A cigana chorava ainda mais
e balançava a cabeça em negação.
As passagens
que se seguiram foram se atenuando com a visão de esmolas, de algumas ações de
irmãs de caridade, além de uma e outra alma boa que, mesmo nas calçadas, diante
do comércio fechado do centro urbano, pesaram-lhe as feridas, afagaram-lhe a
face e disseram-lhe palavras sobre Deus, com o cuidado de não lhe dizerem que o
Criador era justo e bom. Resumiam-se a dizer que aquilo teria fim, que Deus
olha pelos aflitos e guarda a eles bom lugar. A cigana concordava.
Com o avanço
da idade, jovem, passou a inspirar temor. Foi quando desistiu de falar e passou
a acanhar-se num canto e viver de esmolas, fazendo de tudo para que sua
aparência inspirasse antes piedade do que receio. Queria também estar limpo e,
na medida do possível, bem posto, a exemplo dos transeuntes que iam para o
trabalho, pois pior do que causar temor era inspirar repugnância. As noites de
febre não se podiam contar. Quando a dor parecia infinita, a piedosa mulher
mirou o estandarte.
Enxugando as
lágrimas, a cigana começou a passar as mãos sobre os cabelos do menino, que já
não era mais da praça, da rua ou deste mundo, e que foi se fazendo menino em
forma, diminuindo em tamanho e se acomodando ao colo daquela que o envolvia
como uma verdadeira mãe, a mãe que nunca tivera, conhecera e com quem jamais
sonhara. Agora ele cabia perfeitamente no colo da cigana. Já não estava morto,
dormia. E respirava fundo em sono intenso.
Ela
beijou-lhe a face, a testa, acomodando-o ao peito ainda agachada. E nesta
parte, quem narra já não é o Universo, porque a dimensão humana cabe a mim
contar.
A cigana
tinha um menino no colo, ergueu-se diante do estandarte e fez uma reverência à
imagem da santa de pele escura que se via nele pintada e bordada. A santa
cigana certamente tinha um carinho grande para com aqueles que não têm
paradeiro no mundo. A santa cigana com toda certeza abençoava aquele menino que
jamais fora, em verdade, o louco-da-praça.
A comoção
entre os ciganos era geral. Até que o músico do violino gritou:
- Viva a
nossa santa Sara Kali!
- Viva!! –
celebraram todos os outros, sob as bênçãos do estandarte.
A dança
sagrada de celebração da existência infinita seguiu na simples carroça cigana,
enquanto a pracinha, inexpressiva e sem graça - cenário de minha visão mais
aterradora e comovente -, tornou-se, para mim, um templo onde o mistério foi
colocado para ser adorado em verdade e vida.
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