segunda-feira, 24 de junho de 2019

FILME: A ONDA

EVENTOS DO FILME DIE WELLE À LUZ DA PSICANÁLISE


No volume de número 18 das obras completas de Freud, o fundador da Psicanálise investiga, entre outros fenômenos sociais, o comportamento e a psicologia das massas, a partir da retomada de conceitos desenvolvidos por outros autores sobre os quais ele faz observações e a cujas teorias ele complementa com novas hipóteses. Desse modo, Freud, na tentativa de explicar fenômenos sociais coletivos, lança mão de termos como Ego Ideal, Ideal de Ego, Superego, Id, Instinto Gregário, Identificação, Imitação, Sugestão e Libido, entre outros.

Sendo assim, o repertório de conceitos legados pela psicanálise, para refletir sobre os fenômenos de massa, servem com um rico instrumental para, neste caso, analisar os eventos principais que compõem o enredo do filme alemão Die Welle, de 2008, nomeado em português como A Onda, dirigido por Dennis Gansel e inspirado no livro homônimo de 1981 do autor americano Todd Strasser, bem como no experimento social de seis dias chamado de a Terceira Onda e realizado pelo professor de história norte-americano Ron Jones.

No filme, a trama se inicia quando o professor Rainer Wenger, diante de uma turma de alunos de ensino médio, desinteressados, propõe a si e a eles o desafio de ensinar-lhes sobre autocracia por meio de uma experiência social, de modo a provar-lhes que, embora alguns não acreditem, o nazi-fascismo pode voltar a ocorrer na história alemã ou em qualquer parte do mundo.

Para tanto, o professor, de forma persuasiva, em vez de apresentar teorias, propõe que o grupo, inicialmente disperso e sem identidade, adote certos comportamentos e experimente seus efeitos durante a primeira aula. São eles: ajeitar a postura, responder e perguntar de maneira sucinta e disciplinada, e agir praticamente de modo uniforme, como um só corpo. Wenger não impõe esses comportamentos, mas os sugere de maneira que os adolescentes sintam uma relação empática com ele e tenham prazer ao realizar as ações propostas, o que é reforçado pela fala de aprovação do “líder” e seu discurso de superioridade. Ele também reforça uma rivalidade de sua turma contra a turma da aula sobre anarquismo, cujo professor era aversivo e teria sido o maior motivo para que os alunos, evitando-o, aderissem às aulas eletivas de Wenger.

Diante desse simples cenário, já é possível identificar o papel carismático e sugestivo adquirido por Wenger – a exemplo do que é descrito na obra de Freud -, que, ganha notoriedade entre os alunos e adquire uma função quase absoluta de liderança, uma vez que sua influência exacerba as emoções dos alunos – já predispostos a isso – enquanto diminui-lhes a vigilância crítica sobre o processo a que passam a ser submetidos. O grupo, portanto, inicialmente disperso, começa a ganhar coesão e potencial para agir como um só corpo. São motivados pelo prazer da experiência e, mais tarde, pelo clima de fraternidade entre os pares, ou, como chamou Freud, pela libido que une a massa em torno do líder e, ao mesmo tempo, elege um inimigo – ou inimigos – a quem odiar e, consequentemente, confrontar.

A fim de tornar o grupo ainda mais coeso, Wenger apresenta-lhes o lema “Força pela disciplina”, reforçando o ganho coletivo no âmbito intelectual e fraternal  ao se adotarem práticas de conduta em função do interesse comum do grupo, fazendo frente, assim, ao individualismo, segundo ele, resultante de um sistema democrático.
Combate-se ainda a ideia de individualidade, ao se propor também um uniforme – calça jeans e camiseta branca -, uma saudação gestual e um nome – A Onda - para o grupo, os quais, sendo desrespeitados pelas jovens Mona e Karo, culmina em seu banimento da turma.

Nesse sentido, a polarização da percepção dos indivíduos da “massa”, ao mesmo tempo serve para fortalecer sua coesão e afirmar sua identidade socialmente. A violência simbólica da rejeição sobre alguns indivíduos que não se rendem ao comportamento comum atua, principalmente, sobre os instintos gregários e de sobrevivência dos alunos mais indecisos acerca de permanecer ou não nA Onda, cuja ação de ficar com a turma é motivada por emoções como medo da agressão, da rejeição, concomitantemente ao desejo de aceitação e proteção propiciada pelo grupo.

É interessante observar que, ainda durante os acontecimentos iniciais do enredo, diferenças étnicas conflituosas e de grupos de bullying e de oprimidos são amainadas pela sensação comum de pertencimento À Onda, como se a energia de libido criada e alimentada pelo grupo estabelecesse mais pontos de identificação entre os diferentes do que propriamente de distinção, ilustrando os conceitos desenvolvidos por Freud. Assim, personagens como um rapaz de origem turca, um garoto (Tim) desprovido de afeto de seus pais – alvo de perseguições, violência e rejeição – e Bomber – um clássico bully -, surpreendentemente passam a se ver como membros de uma família artificial e com enorme poder de sugestão sobre seus indivíduos, à qual se deve a todo custo proteger.

Assim, em poucos dias, o grupo ganha, por identificação, novos adeptos, inclusive fora de sala de aula, e também novos inimigos, cuja coesão passa a se fortalecer motivada pela oposição À Onda. Distante dos olhos de seu líder carismático, Wengel, que não precisa mais persuadir ninguém com seus comandos, utilizando-se somente de frases curtas e imperativas incontestavelmente obedecidas, o grupo adquire condutas próprias de autopreservação, organização – celebrando festas, pichando símbolos pela cidade, fazendo carteirinhas de integrantes e agindo conforme uma lei interna e não declarada, ou seja, pelo poder de sugestão e imitação a que Freud tratou na obra que serve como base a esta análise.

Em especial, a respeito de Tim, possivelmente por seu histórico de carência afetiva paterna e materna, bem como da rejeição pelo grupo anterior à formação dA Onda, pode-se afirmar que ele entra em processo de profunda identificação com o grupo, sofrendo praticamente com maior intensidade todas as influências do comportamento que caracteriza as massas, ou seja, baixa capacidade crítica e de autocrítica, função de ideal de ego em relação ao professor – ego ideal - , imitação dos membros do grupo, alto nível de sugestão – em vez de pichar muros com o símbolo dA Onda, ele coloca-se em risco ao pichar o alto de um edifício -, atualização de um processo hipnótico primevo, projetando em Wenger o líder-deus, o pai, a quem ele propõe proteger com a vida, embora estivesse o professor longe de correr risco algum, e ao qual, próximo ao desfecho da trama, intenciona matar, temendo que este coloque fim à grande fraternidade, à grande família libidinal à qual ele se sentiu pertencente, na qual se sentiu protegido e afetivamente reconhecido e ligado.
Em última instância, é essa personagem que representa o ápice a que a massa, sob a sugestão de um líder carismático e manipulador, pode chegar.

Sendo este um grupo artificialmente criado, como um experimento social de um professor, tratou-se do que Freud definiu como um grupo efêmero, fadado a um fim. Em desfecho trágico, Wenger, com a intenção de retirar os membros dA Onda de sua condição quase hipnótica, libidinal, altamente coesa e sugestionada, profere o seguinte discurso que atesta a síntese a qual ilustra sua aula e tese sobre autarquias:

“Vocês trocaram sua liberdade pelo luxo de se sentirem superiores. Todos vocês teriam sido bons nazi-fascistas. Certamente iriam vestir uma farda, virar a cabeça e permitir que seus amigos e vizinhos fossem perseguidos e destruídos. O fascismo não é uma coisa que outras pessoas fizeram. Ele está aqui mesmo em todos nós. Vocês perguntam: como que o povo alemão pôde ficar impassível enquanto milhares de inocentes seres humanos eram assassinados? Como alegar que não estavam envolvidos. O que faz um povo renegar sua própria história? Pois é assim que a história se repete. Vocês todos vão querer negar o que se passou em “A Onda’. Nossa experiência foi um sucesso. Terão ao menos aprendido que somos responsáveis pelos nossos atos. Vocês devem se interrogar: o que fazer em vez de seguir cegamente um líder? E que pelo resto de suas vidas nunca permitirão que a vontade de um grupo usurpe seus direitos individuais. Como é difícil ter que suportar que tudo isso não passou de uma grande vontade e de um sonho”.













SOBRE O FILME: NA NATUREZA SELVAGEM


DASEIN EM SUA NATUREZA SELVAGEM



De joelhos não é maneira de ser livre
Levantando um copo vazio, pergunto silenciosamente
Todos meus destinos aceitarão aquele que eu sou?
Então eu posso respirar …”

Guaranteed“, música de Eddie Vedder



No filme Na Natureza Selvagem (2007), dirigido por Sean Penn, homônimo de livro escrito pelo jornalista norte-americano Jon Krakauer e publicado em 1998, apresenta-se a história verídica de uma aventura de dois anos, entre 1990 e 1992, realizada por um jovem chamado Chris McCandless, nascido em uma família abastada do leste dos EUA. Embora não seja esta a função do livro ou do filme, por meio deles é possível ilustrar alguns conceitos capitais discutidos pela chamada terceira força da psicologia, ou seja, a psicologia humanista existencial.
As experiências do jovem Chris se iniciam quando ele rompe drasticamente com a vida que lhe fora programada pelos pais, conforme as convenções próprias à sua classe social e cultura familiar. Assim, tendo se formado na faculdade, ele abandona os sonhos que não eram dele, destrói carteiras de identificação e vínculos simbólicos e concretos com a sociedade, como sua identidade e seu cartão bancário, e lança-se em uma experiência de solitude e no trato real para com a vida, sem os filtros narrativos próprios de sua cultura.
Nesse sentido, a ideia sartriana de que a existência precede a essência pode ser empregada, considerando-se que Chris até então existira, sem ter constituído propriamente sua essência, “existindo, sem ser”, porque ainda não encontrara um sentido autêntico ou uma definição autêntica de si. A viagem que intencionara realizar até o Alasca, possivelmente como representação à viagem ao si-mesmo, ainda estava para ser colocada em ação. O ato simbólico, com seus documentos e passes sociais, evidenciavam seu anseio por liberdade, que, consequentemente, exigiu-lhe o protagonismo para realizar uma escolha, bem como de assumir a responsabilidade pelos resultados advindos dela. A busca do ser, do Dasein, de Heidegger, como ente privilegiado que consegue questionar e compreender a própria existência, revela-se então como a grande força por trás das ações de Chris, que, abandonando a identidade social sobre a qual não tivera escolha, autonomeia-se Alex Supertramp, o que em uma tradução livre seria Alex Superandarilho, aquele que erra sem uma destinação fixa, mas que, em seu caso, errante, como ser objetivo no mundo, procura a estrada do próprio destino a fim de compreender pela experiência os conceitos mais profundos relativos a ser e existir em uma perspectiva diferente dos convencionalismos, ou em uma linguagem metafórica, com o intuito de conhecer o que os espaços vazios dentro de seu copo poderiam comportar. Vê-se, sobretudo, como um ente de possibilidades e potência, não como alguém que, dentro de uma perspectiva passiva em relação a si, na angústia da existência, estaria a se perguntar “onde me perdi de minha vida, o que a vida fez de mim?”. Desse modo, mais uma vez a história de Chris vai ao encontro de uma máxima de Sartre acerca da responsabilidade sobre o próprio destino, acerca do “o que se fazer com aquilo que o mundo fez de nós”, como a chave para viver verdadeiramente um projeto único e inédito do ponto de vista existencial.

Tanta gente vive em circunstâncias infelizes e, contudo, não toma a iniciativa de mudar sua situação porque está condicionada a uma vida de segurança, conformismo e conservadorismo, tudo isso que parece dar paz de espírito - mas na realidade nada é mais maléfico para o espírito aventureiro do homem que um futuro seguro.” (KRAKAUER, 1998)


A visão aparentemente romântica de Alex Supertramp de chegar ao Alasca e entrar em contato profundo com uma natureza selvagem, sem contato com outro humano que não ele mesmo, pode ser interpretada simbolicamente como sua vontade de entrar em contato com sua própria natureza selvagem, ou seja, seu ser Ente, desprovido das relações humanas que o definiriam a partir do contato com o outro. No contato com seu ente ainda desconhecido e, portanto, selvagem, poderia encontrar respostas não exatamente intelectuais para grandes questões da vida, como a Felicidade, como o Sentido da Vida, como o valor de assumir as próprias escolhas e de se responsabilizar por elas, como escapar às angústias – ou lidar de modo saudável com elas – e, em uma última análise, como realizar-se pessoalmente, não em função de normativas ou filtros estabelecidos por grupos sociais, mas dentro do prisma de seu único e realmente válido julgamento, o do olho interno de sua subjetividade.



É nas experiências, nas lembranças, na grande e triunfante alegria de viver na mais ampla plenitude que o verdadeiro sentido é encontrado.” (KRAKAUER, 1998)

Ao se considerar que Chris se dispõe a viver e experimentar a literatura que o inspira, isso porque leva consigo na viagem obras de autores como Jack London, Thoreau e Tolstoi, pode-se afirmar que ele vivencia a experiência com objetos que lhe falavam sobre o mundo, os sentimentos e as relações do ser com a natureza, com o outro e consigo, e, assim, mais do que acatar esses pensamentos como filosofia, poesia ou literatura, introjeta-os como experiência, ao sentido que Husserl propõe: centrando no indivíduo e em sua subjetividade o verdadeiro valor para o conhecimento.
Diferente do que é possível pensar, o intuito de Chris não é simplesmente isolar-se do convívio social como um homem amargurado e misantropo, antissocial e sem capacidade de empatia nem alegria de viver. Sua jornada como Alex Supertramp o leva a interagir com pessoas aparentemente desinteressantes, à margem da sociedade capitalista norte-americana, à margem dos reconhecimentos pautados por conquistas materiais ou sucesso no campo da realização familiar – a ser exposto e reconhecido socialmente. Ele interage com pessoas que vivem suas angústias e experiências delicadas, pagando por escolhas que fizeram de modo mais emocional ou racional, e a quem, ao dar ouvidos, permite ter voz. É assim com o casal Raney e Jan, a jovem Tracy, Wayne Westerberg e o solitário Ron Franz, todos que, apesar das tragédias pessoais, de alguma forma, têm suas vidas em algum ponto ressignificadas com o rápido contato com Alex. Ele os ouve, aprende com eles, porém mais como um filósofo empático – ou um terapeuta , do que como alguém que, identificado-se com os sofrimentos alheios, responde emocionalmente a isso com o desejo de apresentar uma solução ou julgamento - pois, provavelmente, ao romper com as instituições sociais para vir-a-ser, ele decidiu como não deveria ser e, portanto, agir.
Logo, sua história não trata exatamente sobre solidão, mas do uso e experiência da solitude, que o levará ao Alasca e lhe propiciará ter contato com a vida selvagem em seus múltiplos aspectos. Não seria ela possivelmente a experiência definitiva e cristalizada de estar só, mas a experiência de respostas e de contato com uma essência mais profunda e capaz de responder a um desejo de Chris-Alex de encontrar e vivenciar um sentido para sua existência. Contudo, a morte, enquanto ele estava em estado de isolamento social, após dois anos dessa aventura de conhecimento e autoconhecimento, forneceu a Chris-Alex também uma compreensão empírica que não deve ser percebida como um arrependimento ou uma grande moral para que outros não busquem experiências como a dele, mas sim como uma exaltação à vida e ao potencial humano de interagir em bases mais profundas e para além dos convencionalismos e filtros sociais. Conclui Chris-Alex, em sua jornada interrompida: “Felicidade só é real quando compartilhada”. Deixa ele uma afirmação simples para não ser explicada em tratados filosóficos, tampouco debatida, contestada ou defendida. Se é possível assim dizer, sua afirmação propõe a experiência do compartilhamento das emoções em seu sentido mais genuíno e puro, dentro da dimensão em princípio humana e, mais do que é comum à média humana, na dimensão transcendente e capaz de conferir ao ente que pensa a si próprio uma energia vital para se relacionar com a realidade e seus desafios com maior serenidade e autonomia.



sexta-feira, 12 de abril de 2019

PROFESSOR DON JUAN

PROFESSOR DON JUAN: UM BARBA AZUL NAS ESCOLAS

 Recentemente, por conta de diversos eventos, uma memória oculta voltou-me à mente com relativa força. Mais ou menos há 27 anos, quando estava no 1º ano colegial, atual 1º ano do ensino médio, com meus 14 - 15 anos, apaixonei-me pela professora de Literatura. Foi algo platônico.
 Por que aconteceu, não sei. Talvez tenha algumas pistas: ela estava ensinando Romantismo e Ultrarromantismo – acho que isso ajuda. Ela também era uma versão desconhecida para mim de feminino. Tinha algo de selvagem em suas roupas e maquiagem, algo fora da curva. Tinha também paixão pela aula que dava e firmeza no que dizia. Ela sabia se impor na sala, ou seja, em suma, ela, naqueles idos da década de 1990, possivelmente com uns 28 - 30 anos, destoava do comum das mulheres que faziam parte de meu contexto. Ela tinha um estilo gótico de ser. 
 Certa vez, descobri que ela morava em uma rua próxima à minha. Vez ou outra, passava em frente à casa dela com intuito de vê-la, certamente suspirava. Não me lembro de suspirar, mas creio que suspirava.
 Minha sala tinha uns 40 alunos. Nunca falei com ela. Na verdade, nunca tive vontade. Ela não sabia meu nome, e eu não me recordo do nome dela – que coisa… Se ela me abordasse, é bem provável que eu gaguejasse, me sentisse um idiota, uma pessoa ridícula, sem prumo. Coisas comuns para alguém que pouco ou nada entende de relacionamento entre homem e mulher. Estranho seria eu me sentir confiante, seguro e até sedutor. Se eu tivesse 16, 17, 18, ou até mais, e fosse abordado por aquela mulher poderosa, não sei se minha reação seria diferente. Mesmo nutrido com a malícia do meio machista que permeava meu contexto cultural e social, não creio que possuiria forças para despertar um Don Juan íntimo capaz de me auxiliar a adentrar pelos caminhos da sedução e do amor para o qual meu sentimento platônico por ela aparentemente acenava. 
 Contudo, a pergunta que me faço hoje, com os meus quase 42 anos é: o que estaria passando pela mente dela se ela se aproximasse de mim insinuando-se lascivamente, fosse de modo mais tímido ou explícito? Seria possível a paixão inocente de um adolescente estabelecer convergência perfeita com a paixão experiente de uma mulher adulta? 
Penso, sinceramente, que não. Sou adulto e não consigo conceber essa ideia, porque minhas experiências, nos vários aspectos da vida, parecem-me enfáticas ao me demonstrar que um homem ou mulher adultos não conseguem simplesmente se apaixonar por adolescentes. E se é necessário explicação, não há problema, explico. 
 Bom, qualquer adulto é capaz de ler muitas emoções de um adolescente. Adolescentes, de modo geral, são mais transparentes que adultos. Por esse motivo, são também mais vulneráveis. São frequentemente mais românticos e idealistas. Demonstram suas emoções sem máscaras ou filtros – algo que praticamente perdemos ao sermos iniciados na vida adulta. Quando adultos, já estamos versados no uso de máscaras e filtros, pois a experiência acaba nos provando que a espontaneidade, a transparência, a emotividade e, principalmente, nossa boa vontade costumam ser alvo de manipulação, a qual resulta frequentemente em nosso próprio prejuízo. Mulheres jovens com bebês no colo, desamparadas pelos pais de seus filhos, não me deixam mentir. 
 Um adulto, diante de uma adolescente apaixonada, sabe perfeitamente que o amor platônico entre pessoas em posições geracionais tão distintas é algo que não deve ser profanado e não pode ser maculado com malícia. Afirmo isso, no entanto, sabendo que alguns colegas de profissão podem me acusar de puritanismo. Com o perdão da palavra, já adianto: Foda-se! Não tenho pacto de fidelidade com professores que seduzem, sexualizam e manipulam alunas adolescentes. E é neste ponto do texto que perdemos literalmente o pudor. Continuem por própria conta e risco. 

 Sigo em uma toada autobiográfica, a fim de analisar alguns pontos que considero importantes. Antes, contudo, vou elencar algumas frases machistas que já ouvi inúmeras vezes e sei que são conhecidas de muitos. Vamos a elas: 
 “Passou dos 50 quilos, está pronta para o abate.”
 “Saiu arrumadinha, está querendo dar.”
 “Olhou com carinha de quem está querendo dar.” 
 “Se faz de desentendida, mas sabe o que quer.” 
 “Deixou de ser consumidor para se tornar fornecedor” - comentário feito sobre ou para homens que têm filhas. 

 Eu poderia apresentar outras versões mais pesadas dessas frases, mas acredito que elas ilustram bem o ponto que nos interessa. Nós, homens, crescemos ouvindo isso, às vezes até pela boca de professores, tios, irmãos e amigos. Mas, voltemos aos relatos. No final da adolescência, confesso que não era uma pessoa extrovertida e capaz de estabelecer uma conversa mais interessante com alguém em quem tivesse interesse. Não possuía muitas habilidades sociais, pré-requisito importante para chamar a atenção de crushes. Um certo complexo de inferioridade naturalmente era presente em minha vida, principalmente na questão amorosa – nada que não seja comum à maioria das pessoas. Contudo, algo mudou quando fui para a faculdade. Percebi que comecei a despertar interesse em meninas da mesma idade ou um pouco mais jovens. Junto, surgiu uma confiança para tomar iniciativa, o que foi algo realmente excelente para mim. Porém, pude experimentar, pouco tempo depois, um fenômeno também desconhecido até então: o poder conferido a alguém que tem a palavra, representa o conhecimento e se impõe de certa forma diante de um público obrigatoriamente cativo. 
Por volta dos 22 anos, quando comecei a lecionar como estagiário em uma escola regular para o ensino médio, percebi a força magnética e naturalmente sedutora que um professor pode adquirir. E quem está nessa posição e já a experimentou, sabe do que estou falando. Percebi também que o que ocorre em uma sala de aula, no contexto que aqui tratamos, é somente um jogo de projeções muito efêmeras e deléveis. Um professor ou professora está somente desempenhando um papel; como um recorte de um indivíduo muito mais complexo, é alguém que atua diante dos alunos, ele não está sendo quem verdadeiramente é, do mesmo modo que cantores e artistas não estão no palco apresentando o que eles verdadeiramente são, independente da própria índole. 
 Assim, no papel de professor, não foram poucos os casos em que percebi situações como a que eu mesmo vivi quando adolescente diante daquela professora de Literatura – aliás, matéria que lecionei por anos. E sei que meus colegas de profissão conhecem muito bem esse fenômeno a que me refiro. Até aquele de nós, professores, que se julgue o mais feio e desinteressante, consegue, por pelo menos uns quinze anos em sala de aula, provocar uma paixãozinha desavisada em alguém. Isso, no entanto, não tem nada a ver com se gabar, pois inclusive não se trata de uma emoção ou sentimento de fato consistente, mas uma projeção de questões subjetivas que não dizem respeito exatamente ao objeto que recebe essas projeções, no caso o professor ou professora. 
 O que fazer diante do fenômeno? 
 Ora, deixar passar. Porque ele passa; como se diz: as projeções caem. E quando isso acontece, sobra somente o ser humano, despido de qualquer apelo sedutor. 
Quando esse adolescente torna-se mais experiente, ainda que não teorize a respeito, começa a compreender o fenômeno. Já no âmbito do adulto, o professor, ou seja, aquele que compreende o fenômeno - e o testemunha por ser seu objeto central – deve ser tomado de compaixão e empatia em favor de quem sofre com ele, nada mais – isso conforme, ao que parece, minha mera opinião. 
 Apesar disso, minha experiência provou que não é bem assim que acontece e que essa não é exatamente a regra. Alguém com complexo sério de inferioridade, quando se vê desejado por alunas, às vezes pode se encantar e acreditar que um certo poder lhe foi outorgado pela natureza da profissão, e passa a considerar que, portanto, não haveria mal em fazer uso dele. Então o tablado, além de envolver um aspecto subjetivo de sedução já mencionado, começa a ser palco de performance sedutora também de seu ator principal. Sim, amigas e amigos, nasce um professor Don Juan. 
 Por minha experiência, posso dizer que essa é uma tentação, sim. Ela deve ser muito presente tanto em escolas quanto faculdades, afinal, como é prazeroso ser solicitado, respeitado, admirado e desejado por alguém – nisso não há dúvida! Eu seria muito hipócrita em não admitir que um dos maiores prazeres de lecionar é também ser o alvo de atenção, admiração e respeito. Por esse motivo, quando essa relação se dá entre adultos, ela simplesmente não me interessa; no entanto, entre professores e adolescentes, isso me preocupa – e muito! 
 Faço a ressalva a fim de não ser injusto: professores envolvendo-se com alunas e ex-alunas – e vice-versa - não é uma novidade na história da humanidade, nem é tema que desejo problematizar aqui, contudo volto à questão dos adolescentes, pois esse é o maior enfoque do texto, senão o único. 
 Voltemos aos relatos então. 
 Tive experiências em salas de professores em muitas escolas - e preciso ser justo – não em todas, mas em algumas, presenciei conversas no mínimo inconvenientes. Uma delas diz respeito a comentários sexistas a respeito de alunas, suas características físicas, bem como a desejos inconfessáveis – confessados – que certos professores tinham de fazer isso ou aquilo.  
O que eu fiz diante daquilo? 
Ouvi, achei absurdo, mas me mantive calado. 
 Ouvi também professores falando de modo sexista de professoras. 
 O que fiz?
 Ouvi, achei absurdo, mas me mantive calado. 
 Ouvi casos de professores que saíram com alunas adolescentes, sentido-se desculpados pelo estigma de Lolita - “a adolescente que sabe muito bem o que está procurando”. 
 O que fiz? 
Segui o padrão de sempre. 
 Diretores e coordenadores, em alguns casos, sabiam o que acontecia. As atitudes, no entanto, eram bem reveladoras, lamentavam que aqueles casos pudessem tornar-se públicos, manchando a imagem glamourosa da escola. Interessante, né? 
 Certa vez, o que vi? 
 Vi um professor acariciando o cabelo de uma aluna de 1º ano de ensino médio. 
Sua voz suave e baixa não me permitiu ouvir do que se tratava – certamente “uma brincadeirinha sem importância”. A menina deve tê-lo achado “sem noção”. Era um homem de 40, com esposa e filhos, bem conceituado na comunidade e na igreja que frequenta. 
 O que fiz? 
 Fiz muito pouco, só não acreditei no que estava vendo. 
 Falar de um colega e fazê-lo perder o emprego? 
 Talvez não perdesse, pois sua conduta seria relativizada, amenizada e, afinal de contas, talvez eu só tivesse interpretado mal algo inofensivo e inocente. Não creio, no entanto, nessa última tese. 
 Conheci um caso mais grave, semelhante ao que é descrito como Síndrome de Don Juan; era um professor que saía com inúmeras mulheres ao mesmo tempo, inclusive alunas. Uma com quem se envolveu parece que se apaixonou por ele e se dispôs a uma declaração pública – saiu humilhada do cursinho. Quem o ouvisse falar da própria vida e das desventuras na vida amorosa, acreditaria estar diante de uma grande vítima do destino e da incompreensão alheia. Era um cara simpático, como é a maior parte dos Don Juans, porém suas ações, analisadas friamente, indicavam que apenas era um homem frívolo, para o qual o sentimento das mulheres e adolescentes com as quais se envolvia não significava nada. Lembrei-me agora do conto do Barba Azul, o qual recomendo a adolescentes apaixonadas ou em vias de se apaixonar por professores e boys de 40 anos.

 Recentemente, conversei com ex-alunos e me decepcionei ainda mais com relatos envolvendo colegas conhecidos de profissão. Alguns da lista me surpreenderam, outros só serviram para juntar mais histórias da mesma categoria. E, então, passei a me perguntar: será que todos da lista desenvolveram transtorno de personalidade narcisista, antissocial ou histriônica, ou parte deles simplesmente sucumbiu a uma cultura machista, sexista e narcisista dentro da qual, pelo empréstimo da profissão, tentam lidar com um complexo de inferioridade profundo? 
 Sei, entretanto, que seu rastro é longo, e que um professor que tenta seduzir uma adolescente ou a aborda de maneira dúbia e sexista não merece estar em uma sala de aula, ainda que tenha todas as titulações e capacidade intelectual para estar lá. Se algum de meus colegas discorda de minha posição e acredita que de fato existam Lolitas na vida real, peço que comentem este texto, mas não sem antes enviar mensagens para todas as alunas e ex-alunas que passaram por situações semelhantes às descritas há instantes. Consultem-nas, perguntem o que elas acham desse tipo de conduta, estenda as perguntas aos pais, mães e responsáveis. Certamente a resposta deverá surpreendê-los, pois lhes asseguro que será muito diferente do que imaginam, mais diferente ainda dos comentários que frequentemente devem ouvir entre professores que possuem a mesma conduta. 
 É interessante também lembrar que a nossa legislação não romantiza Don Juanismo entre adultos e adolescentes e que, inclusive, coordenadores e diretores que encobrem atos desse tipo – para livrar a imagem da escola ou por condescendência - tornam-se cúmplices de um crime. É também importante dizer que adolescentes podem denunciar e, sobretudo, não devem se calar diante de situações que firam sua dignidade. 

 Por fim – e este parágrafo é especialmente para uma adolescente apaixonada por um professor -, se você sentir que a gentileza de seu crush professor extrapola a boa vontade e que ele está receptivo a uma investida amorosa ou toma iniciativa nesse sentido: Corra! Seu príncipe é um sapo, daqueles venenosos e muito perigosos! O amor platônico não é um problema. Por enquanto, é preferível ficar no mundo das ideias a descobrir que o príncipe não passa de um terrível Barba Azul, cujo rastro é violento, embora, para muitos, não pareça.

 Leonardo Cassanho Forster

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Mulher, aprenda a matar!

 MULHER, APRENDA A MATAR!

 Frequentemente, reposto em minha rede social notícias de violência contra mulher, sejam elas desastrosas ou de casos raros em que a vítima consegue defender-se, acompanhadas de legenda idêntica ao título deste texto, o qual defino como síntese de minha profissão de fé sobre o tema e também como provocação. Alguns amigos, embora raros, vez ou outra mencionam este lema fazendo referência a mim, mas ninguém até hoje havia me perguntado, para fora da obviedade, o que ele realmente significa.
Estipulei, no entanto, a mim mesmo, que, quando alguém me perguntasse, responderia à questão por meio de um artigo de opinião como este. Não obstante, antes de continuar, preciso lembrar que este é o texto de um homem branco, hetero e de classe média, que, portanto, jamais sofrerá violência física, psicológica ou simbólica, motivada por sua característica bio-sexual, de orientação sexual, de traços étnicos ou condição social que venha a afetar direta e profundamente sua vida. Isso esclarecido, proponho algumas reflexões a fim de defender a ideia que tenho sustentado de que é necessário aprender a matar. A primeira questão inerente ao aforismo é a ideia de violência. E violência é algo que, uma vez manifesta, perde sua previsibilidade e, portanto, possibilidade eficiente de controle. Não há certezas diante de eventos violentos a não ser o de que, concomitante a eles, haverá medo, talvez pânico e, certamente, prejuízos. Os danos podem se dar em diferentes níveis, afetando desde a dignidade simbólica até a material e corporal. A violência sexual, em especial, deve ser a que mais afeta com muita profundidade quase todos os níveis de dignidade, sendo assim a mais aviltante e terrível. A não ser em contextos muito específicos, um homem teme por sua dignidade no sentido de receber agressão sexual, contudo, nesse prisma da questão, não são poucos os homens, assim como mulheres, que carregam chagas abertas de violência sexual sofrida na infância. No entanto, gostaria de me ater mais detidamente à questão da mulher jovem e madura, a quem exorto: aprenda a matar!
Por que isso? Seria uma posição radical? Eu poderia dizer, aprenda a se defender. Soaria mais politicamente correto, porém não seria correto com minha própria visão atual de mundo. Aprenda a matar possui um peso diferente de aprenda a se defender. Aliás, muitos cursos de autodefesa para mulheres não parecem suficientemente realistas para garantir-lhes verdadeiramente a integridade física.
Penso que a grande questão está no fato de que, além da inegável cultura do estupro presente em nosso país e sobre a qual não convém discutir agora, pesquisas sobre feminicídio demonstram o quanto mulheres são agredidas, violentadas e mortas por homens de seu círculo íntimo. São eles frequentemente namorados, ex-namorados, maridos e ex-maridos. É evidente que há outros casos, mas esses são muito simbólicos em vários sentidos. Isso porque nesses casos os algozes desfrutam de circunstâncias em que suas vítimas ficam desprotegidas por completo. E quando se está frente a frente com um agressor em quem há poucos instantes se confiava, se não houver preparo real não exatamente para conter agressão mas agredir de modo eficiente em resposta ou já como prevenção, as chances de ocorrer o pior a quem não merece, ou seja, a vítima, é realmente muito grande, muito grande mesmo. Em momentos críticos assim, é quase impossível contar com a sociedade ou com o Estado. Nesse sentido é que peço empatia do leitor para minha tese – ainda que tenha completo direito de abandoná-la mais tarde - , estou tratando aqui de dados de realidade, não do que seria ideal.
 Quando alguém diz eduquem-se os homens para não serem escrotos assim, só posso dizer que concordo plenamente, entretanto pergunto: quando esse novo homem ideal será uma realidade?
Durante décadas vamos nos perguntar onde ele está enquanto mulheres continuarão a ser espancadas, estupradas e mortas?
Mulher, é urgente, aprenda a matar!
 O aprender a matar a que me refiro vai do literal ao simbólico. Nas artes marciais sérias, indistintamente, é bastante interessante observar que se aprendem golpes dos mais simples aos mais críticos. São projeções, torções, enforcamentos, esquivas, chutes, socos, enfim, movimentos que podem gerar lesões muito sérias e, inclusive, levar o oponente à morte. Há ainda técnicas com lâminas, sprays e até armas de fogo, que podem ser empregadas com eficiência, desestimulando um agressor ou sendo utilizadas em vias de fato para contê-lo, deixá-lo inconsciente ou até matá-lo mesmo. No contexto das artes marciais e cursos sérios de autodefesa, essas técnicas são ensinadas e treinadas exaustivamente, privilegiando-se a ética e o bom senso. Ninguém está ali para agredir propositalmente, intimidar ou abusar de ninguém. As pessoas estão em busca do desenvolvimento de seus reflexos, potencialidades corporais e de técnicas eficientes para impedir que qualquer tipo de agressor consiga de fato se beneficiar covardemente do despreparo de sua vítima.
Gostaria ainda de lembrar que o caminho marcial não é exatamente como o dos esportes vistos na TV, pois em eventos é proibido o uso de técnicas mais objetivas e eficazes para se inviabilizar o ataque de um agressor, afinal atletas não podem sair aleijados ou mortos de um ringue. É válido lembrar também que entender aspectos psicológicos por trás de momentos de iminente agressão contribui para fuga ou o emprego de ações que se antecipam ao ataque de alguém. Porém, por melhor que seja o treino e as técnicas praticadas, se uma conhecedora profunda de autodefesa não tiver a convicção de que talvez ela precise chegar ao extremo de agredir alguém para evitar seu estupro ou o próprio assassinato, nada disso lhe valerá de nada. Talvez até alguém sem nenhum preparo, mas, paradoxalmente, com a convicção de que é preferível aleijar ou matar a morrer, terá melhores chances de se proteger. Eis aí mais uma vez o aforismo: Mulher, aprenda a matar!
 Em casos críticos – e penso que seja necessário destacar isso – Deus está do lado do mais forte ou da mais preparada – melhor é ser a mais bem preparada. Entre vítima e agressor, dificilmente haverá outra pessoa. Justiça verdadeira não existe. Um estuprador ou assassino, mesmo quando julgado e preso, fez um mal irremediável.
 Acho que meu ponto já está bem claro, apesar de falar de uma posição bem confortável de alguém que nunca precisará participar efetivamente dessa guerra. De qualquer forma, deixo essa primeira reflexão.
Em segundo lugar, gostaria de tratar dos aspectos simbólicos do aforismo em análise. Aquele que aprende literalmente a matar e o faz de modo consciencioso – sendo que mulheres costumam ser mais habilidosas nesse quesito do que os homens - compreende seu potencial e adquire maior autoconfiança, segurança e serenidade para enfrentar diferentes tipos de situações adversas. Quando se aprende a matar – no sentido que aqui defendo -, adquire-se um maior poder de enfrentamento do mundo, de firmeza e desenvoltura diante de pessoas e situações. Não necessariamente se fica embrutecido, pelo contrário, fica-se mais desperto, menos ingênuo e mais atento às pequenas, sutis e aparentemente inofensivas agressões, as quais costumam ir se avolumando até culminarem nas grandes e indefensáveis violências. Nessa perspectiva, quando se aprende a matar, é comum que as atitudes de quem tem a convicção de se defender até a última e mais crítica situação aniquilem no nascedouro as intenções dos agressores contumazes, que, por serem covardes, procuram sempre outras vítimas. E isso não tem a ver se a mulher é baixinha e magrinha, mas sim com uma postura mais ou menos combativa quando se está em contato com o algoz. (Há casos e casos – eu sei.)
Um exemplo clássico é olhar nos olhos do agressor, quando este procura intimidar com uma fala de cunho sexista; ou em vez de apertar o passo em uma situação da qual não se pode escapar, parar, voltar-se para o agressor, olhando-o destemidamente, e então perguntar de modo firme: Você precisa de ajuda? (Há casos e casos – eu sei.)
 Naturalmente, ações como essas não garantem cem por cento de eficácia, mas minimizam a chance de atuação do algoz, pois ele costuma se excitar quando sente que provoca medo na vítima e se desestimular quando sente que a vítima potencial não o teme ou que pode revidar. Lembre-se, estamos falando de covardes. Seria leviano, no entanto, desconsiderar que há casos e casos, e uma coisa é essa teoria bem superficial aqui, outra coisa é a hora em que a realidade chega até nós e nos bate à porta, quando não nos bate diretamente na face. Por esse motivo, enfatizo a necessidade do preparo e o cuidado para não cair na ilusão de que um curso de defesa pessoal de final de semana ou ler e se contentar com vídeos que ensinem essa ou aquela técnica de defesa sejam o bastante para garantir uma atitude adequada em situações extremas. Aprender a matar envolve junto com o preparo físico, sobretudo, o preparo psicológico para agir. Quem aprende a matar no muito, aprende a matar no pouco. Quem mata no pouco, frequentemente não precisa matar no muito.
 Voltando ao aforismo, repare que ele diz: “Mulher, aprenda a matar!” - ou seja, ele não orienta: “Mulher, mate!” Apesar disso, acrescento: “Mulher, se necessário, mate!” - a errada não terá sido você. E ainda que a Justiça e a sociedade não se coloquem a seu lado, você saberá que não falhou consigo mesma.
Por fim, já antecipo que não levanto a bandeira de que mulheres devem andar armadas – tampouco homens -, mas que quem esteja disposto a fazê-lo, que verdadeiramente se prepare para isso, que possua uma rotina de treino e senso de responsabilidade. A arma pela arma, seja pistola, faca ou o que for – é só um presente para o agressor quando quem a possui não sabe de fato utilizá-la.
Sei que não sou o dono da verdade, porém tenho certeza de que não são textões também que salvam uma vítima quando ela está diante de um agressor.




segunda-feira, 25 de setembro de 2017

A cruz cristã em um centro de umbanda?


    Quando nascemos - dizem os sábios - recebemos sobre as costas a primeira de nossas cruzes, composta por dois eixos: o vertical - do tempo -, e o horizontal - do espaço. Será ela mais ou menos leve conforme nosso sexo, condições físicas, posição social e circunstâncias familiares e sociais.
    Assim, nascer pobre no Brasil em 2017, em um grande centro urbano como São Paulo, pode ser bem mais promissor do que nascer na realeza de Portugal, em Lisboa de 1755. Isso porque hoje contamos com uma medicina muito mais avançada, saneamento básico, acesso à informação e uma série de comodidades que em 1755 um nobre jamais sonharia. Outra questão importante é que naquele ano o terremoto de Lisboa matou milhares de pessoas, deixando outras tantas em situação de orfandade, carência e penúria extrema, independente de classe social. 
    Só para citar um exemplo mais palpável, a cruz do tempo - espaço é mais leve para casais homoafetivos que estão atualmente na Holanda em comparação aos que vivem hoje no Brasil, sendo que ambos estão praticamente no paraíso se comparados a homossexuais que vivem na Arábia Saudita. Não é preciso muito para perceber que, ao modificarmos o eixo espaço - sem movermos minimamente o eixo tempo -, o peso da cruz aumentou substancialmente, talvez ao nível do quase insuportável.
    A cruz tempo - espaço também se junta e interfere em outras cruzes. Uma delas é a cruz cujo eixo vertical é o desejo e o horizontal é a ação. É possível possuir um desejo e não poder concretizá-lo por causa do tempo ou do espaço. Em alguns casos, esses elementos são negociáveis, o que não se pode realizar agora, realiza-se mais adiante. Já em outras situações, o tempo ou o espaço literalmente jogam contra. Muitos gênios devem ter sofrido com isso, e, guardadas as proporções, todos nós sofremos com os complicados elementos dessa engrenagem.
    Outra cruz que se relaciona intrinsecamente com as duas anteriores é aquela que tem como eixo vertical o conhecimento e como eixo horizontal nosso raio de aplicação desse conhecimento. É comum que o pouco conhecer resulte em agir com pouca eficiência, ou o pouco autoconhecimento resulte na ação autodestrutiva. De acordo com essa metáfora, quanto menor o eixo vertical da cruz tanto mais pesada ela costuma ser.
    Contudo, creio que se o leitor chegou até este ponto da leitura, sua boa vontade em prosseguir nos meandros deste texto deve-se ao fato de que a cruz do título, uma clara alusão ao símbolo máximo do cristianismo, chamou-lhe maior atenção do que as cruzes que propus até agora.
    Então vamos a ela.
    A cruz infamante, na qual Jesus, o Cristo, foi crucificado, era do mesmo tipo em que foram ao mesmo tempo torturados e mortos dois ladrões. É da tradição que ambos os bandidos não recebam piedade nem comovam uma décima parte do que comove a imolação de Jesus. Isso por motivos óbvios, o último era, além de inocente, o próprio Filho de Deus - se podemos nos expressar assim. Observem que ele foi crucificado pelas cruzes tempo - espaço, desejo - ação, conhecimento - aplicação do conhecimento e algumas outras cruzes que com um pequeno esforço poderíamos inferir. É oportuno lembrar que a crucificação de Jesus também não teve grande repercussão a não ser entre poucas pessoas de seu tempo.
    Apesar disso, sua cruz ressignificou um instrumento de tortura e morte, transformando-o em um estandarte de fé a indicar concomitantemente as agruras da vida material e a vitória da vida espiritual para além dos véus da morte. Tornou-se símbolo do messias esperado na tradição judaica, embora muitos judeus, por diferentes razões, não o tenham aceito como tal, nem tenham a obrigação de fazê-lo.
    Nesse sentido, penso que seja importante que os cristãos, não importando sua denominação, compreendam que Jesus Cristo, apesar de sua relevância óbvia no cristianismo e na repercussão dessa fé no mundo, é entendido por alguns como um mito, por outros como uma figura histórica e por outros é completamente ignorado, sem que essas pessoas sofram nenhum tipo de abalo de consciência ou sintam desejo de serem tocadas em seu senso de transcendência por aquilo que Jesus possa representar. Assim, os únicos que têm realmente algum tipo de compromisso com Jesus Cristo são aqueles que por algum motivo acreditam nele, pois todos os demais estão completamente desobrigados a crer nele, a seguir seus ensinamentos e a praticar os ritos inspirados em sua mensagem.
    Se alguém que se define como cristão não consegue compreender isso é porque está preso à cruz tempo - espaço medieval ou à cruz contemporânea da ignorância - intolerância.
    E por que estou escrevendo sobre isso?
    Explico.
    Este texto nasceu em uma encruzilhada, ainda que metafórica. Foi em uma semana em que notícias sobre intolerância religiosa ganharam a mídia. Mais uma vez, religiões de matriz africana foram atacadas na figura de seus ícones e representantes.
    Talvez esse fato tenha se encruzilhado com um evento ao acaso, pois no mesmo período em que as tristes notícias se propagavam pelas redes sociais, eu ia pela quinta ou sexta vez a um terreiro de umbanda relativamente grande de minha cidade. 
    Preciso esclarecer, para ser justo com meu leitor, que não sou umbandista, pois não compreendo bem essa religião nem suas práticas, embora acredite em mediunidade, na boa vontade de pessoas que entregam seu tempo e empenho de modo desinteressado à própria fé, além de não colocar em dúvida a veracidade dos fenômenos que posso testemunhar sempre que vou a esse centro de nome muito despretensioso.
    Em nenhuma das vezes que ali fui, vi qualquer manifestação de intolerância ou crítica à qualquer outra religião. Pelo contrário, os trabalhos abrem com uma saudação de respeito a todas elas. Ignoro qual seja o conceito que lá fazem de Jesus, se ele se trata do Filho na trindade, se ele é um espírito evoluído ou representação de um orixá - somente sei que ali o respeitam e, inclusive, há uma imagem dele entre a de outros santos. Recebe ele ali outro nome? De fato não sei.
    Os trabalhos também iniciam com um Pai Nosso, prece praticamente judaica ensinada por Jesus a seus discípulos e imortalizada nos evangelhos. 
    Apesar, no entanto, da prece cristã e da imagem de Jesus fazerem parte do contexto que testemunhei, certamente, do ponto de vista tradicional, a umbanda não é cristã, pois não se trata de mais uma entre as inúmeras ramificações de igrejas com diferentes interpretações das escrituras. Creio também que os umbandistas nem se preocupem em se definir como cristãos, no sentido strictu da palavra e talvez nem no sentido lato. E aí você deve estar se perguntando: "como fomos chegar a esse ponto de ideias tendo iniciado a falar de cruzes?".
     Bom, o fato é que em minha última visita ao lugar mencionado, percebi que no símbolo dessa casa de umbanda em específico há uma cruz. Confesso que nunca havia reparado nisso e também que fiquei surpreso ao vê-la. Imediatamente, me ocorreu que se tratava de um símbolo de caminhos que se cruzam ou de caminhos que chegam todos a um mesmo ponto, ou ainda de mensagens que saem todas de um mesmo ponto. E dessas reflexões últimas cheguei às primeiras que expus logo no início do texto, as quais, em verdade, nem são originalmente minhas. De qualquer modo, a cruz, como todos sabem - ou deveriam -, é um símbolo muito anterior ao cristianismo.
    No entanto, não descartei também que o símbolo do centro pudesse ter uma referência cristã, embora a casa de umbanda em questão não desenvolva em discurso retórico doutrina de nenhum tipo nem faça proselitismo. 
    O que posso dizer com certeza é que o trabalho a que fui dessa vez e das outras trata-se de uma atividade de atendimento, de aconselhamento, de consolação e orientação em que nada é pedido em troca, nem mesmo a crença na umbanda ou em seus ícones. Basicamente, é um momento aberto para que pessoas tragam suas inúmeras cruzes de modo a encontrarem ali uma forma de se aliviar o peso da experiência da cruz humana e de prosseguirem mais leves no próprio caminho, sem nenhum tipo de julgamento ou livres de qualquer imposição que gere conflitos de consciência. Ali também se deixam cruzes que outros colocam sobre nós e que não são obrigatoriamente de nossa responsabilidade carregar. 
    Contudo, ironicamente, o próprio lugar, seus adeptos e frequentadores têm sobre si ainda uma cruz tempo - espaço da qual não conseguem se livrar, uma vez que esta última diz respeito a um país no qual os maiores perseguidores das religiões de matriz africana são forjados dentro de cultos que escolheram a cruz como símbolo máximo de sua ideologia e dentro das quais é possível ouvir - até sem nenhuma dissimulação - o uso leviano de referenciais importantes e cultuados na umbanda e no candomblé, além da repreensão explícita aos praticantes dessas religiões, juntamente com apologia ao temor e ódio a tudo que a elas se refira.
    Preciso mais uma vez admitir que não sei o que a cruz representa no símbolo daquele verdadeiro templo de religiosidade, mas tenho profunda certeza de que a umbanda e algumas outras religiões têm carregado cruzes muito cruéis impostas pelo próprio cristianismo - no sentido histórico e social - que já poderiam ter sido superadas há um bom tempo, principalmente no Brasil. Por esse motivo, a cruz cristã - e o bom entendedor compreende perfeitamente o que eu digo - certamente tem pesado muito sobre indivíduos que têm todo o direito de pensarem, acreditarem e cultuarem de modo diferente do que muitos outros consideram adequado, correto e ortodoxamente verdadeiro.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Corpos da mulher


Antes de escrevê-lo, já sei que este texto é polêmico. Ele é assim, pois, quando respeitamos nossa subjetividade, não precisamos fazer concessões - fazê-las, muitas vezes, é se trair. Aqui você lerá reflexões de um homem hetero sobre um dos temas que mais atraem pessoas desse tipo: a mulher e seu corpo. Vou fugir às generalizações, porém prefiro substituir o termo "eu" por homem. Sei que muitos de nós - homens - não concordarão com o que vou escrever - isso também não me preocupa -, pois acredito que outros tantos devem sentir da mesma forma que eu e encontrarão talvez certo consolo nestas linhas.
Certamente, a relação de todo homem com o corpo feminino começa no contato com o corpo da mãe. Sobre isso, no entanto, não posso escrever, pois é assunto cujo entendimento me falta. Contudo, por experiência, sei que muito do que o homem aprende sobre o corpo feminino ele o faz ao perceber como a mãe ou outras mulheres ao seu redor tratam o próprio corpo. O excesso de pudicícia ou a naturalidade com a qual as mulheres da casa lidam com a carne que lhes reveste a alma determinará, na criança do sexo oposto, certas curiosidades ou modo de tomar contato com o corpo do outro sexo. O que essa ou essas mulheres descreverem como belo no corpo feminino também afetará a percepção estética da criança sobre o próprio corpo e o corpo alheio.
Lembro-me de que, quando criança, até meus onze anos, o único recurso de que dispunha para avaliar a beleza feminina eram referenciais da face. Uma menina ou mulher eram bonitas para mim pelo rosto. O melhor de tudo é que não existia exatamente um padrão e, por esse motivo, as meninas de minhas primeiras paixões tiveram rostos muito diferentes: rechonchudos, esguios, morenos, orientais, rosados. Na face também, além dos sinais físicos, transpareciam os sinais do mundo interior, como a simpatia, que podia tornar a menina muito mais atraente.
Por sorte, nos idos de 1980, eu não era refém da mídia e de seus close-ups, dos padrões de roupas e penteados. Era só um menino interagindo com outras pessoas de minha idade.
Nessa época, aos 11, dei meu primeiro beijo. Era C., uma menina de mesma idade. Apaixonei-me pelo sorriso, pelo rosto, pelos cabelos. C. era boliviana, fenotipicamente uma índia inca. Fora dos padrões das revistas, das propagandas, da TV e do cinema. Na época, eu era feliz por não reconhecer padrões.
Infelizmente não namoramos, isso devido à minha incapacidade emocional e intelectual de levar uma conversa adiante ou mesmo ser realmente carinhoso e agradável. 
Na mesma época tive contato com a revista Playboy. Um vizinho meu jogara algumas no lixo. Tendo-as encontrado, tinha a impressão de que tê-las me tornaria mais homem. Peguei-as. As imagens das mulheres eram ao meu ver lindas, sendo suas protagonistas completamente diferentes das mulheres que conhecia. Não eram eroticamente interessantes para mim, mas didáticas, uma vez que aprendia como seriam os ambientes com apelo erótico e como as mulheres deveriam supostamente agir para se tornarem sexualmente desejáveis.
Nesse momento, o imaginário acerca da mulher dividiu-se em dois: a mulher real e a mulher da revista.
Felizmente, naquela época, a mulher real continuou, para mim, mais interessante. 
Com uns doze anos mais ou menos, aprendi a olhar a bunda feminina. E por isso sei que esse hábito tão característico do brasileiro resulta de um aprendizado. Alguns amigos de escola haviam aprendido antes de mim, e - por causa deles - aprendi, observando os comentários, qual era o mais belo e o ideal. Aprendi também sobre a estética dos seios, das pernas, da barriga, da face, dos cabelos, dos olhos. Fiquei diplomado na beleza da mulher brasileira. A partir daí, um pouquinho de televisão e cinema contribuíram para o refinamento de minha educação nessa área apaixonante do conhecimento.
Resultado, tornei-me um adolescente crítico, adotando um verdadeiro padrão de qualidade, um padrão de tão alto nível que certamente barrou a possibilidade de eu me relacionar de maneira mais espontânea e interessante com o sexo oposto.
Talvez eu estivesse indo por um caminho perigoso não fosse uma situação providencial: um encontro com o passado.
Pois é, lembram-se da garota boliviana? 
Então, contava eu 19 anos quando encontrei-a por acaso na rua. Ela estava linda, tinha a mesma idade que eu. Seus cabelos tinham ainda o mesmo brilho e efeito hipnótico, sua boca continuava linda, assim como os olhos e todo o resto. Embora minha personalidade houvesse mudado - eu certamente me acreditava mais sério, mais adulto - a dela parecia ainda a mesma de oito anos antes. Uma pessoa leve, simpática, doce.
Conversamos um pouco e foi o bastante para reacender um suave gosto do primeiro amor. Aproveitei para insinuar a possibilidade de um novo encontro; ela acenou-me um adeus: havia alguém em sua vida.
Nos despedimos, e segui meu caminho para casa. 
"Como ela estava linda!" - pensei.
Comecei a analisar como ela se transformara da pré-adolescência até a juventude. Pouca coisa mudara, e tudo para melhor.
Então, uma surpresa: pensei nos traços dela, na estatura, no corpo fora dos padrões consagrados, completamente fora de qualquer referência exaltada na mídia. 
"Afinal de contas, ela era feia?"
Pareceu-me que ela era feia. Minha razão o disse e reafirmou.
Foi estranho digerir o fato de que ela era linda e feia ao mesmo tempo.
Tentei refletir sobre o que dava forma ao absurdo de eu me sentir atraído por uma menina feia, que a mim parecia bonita.
Então, fazendo algumas desconstruções, finalmente entendi: 
Ela era de fato linda! - meu coração me ajudara a organizar os pensamentos.
E foi isso que me fez entender que a minha infância e pré-adolescência haviam me ensinado a ver a beleza feminina, enquanto o mundo dos homens, ao me condicionar a ver um padrão de formas idealizadas, tornara-me cego para enxergar a mulher que vive infinitamente mais bela dentro de toda mulher.

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Crime, Amor e Verdade

Crime, Amor e Verdade

         Tenho de confessar, estou muito feliz com o título desta crônica. Penso que ele cabe como uma luva e é bem fiel ao que estou prestes a narrar. Isso pelo fato de eu acreditar que, embora o caso em si não dê um romance ou filme, ele possui combinados três ingredientes que costumam mexer com as multidões de leitores e espetadores que procuram uma ótima história; a saber: crime, amor e verdade. Trata-se, portanto, de uma história real e, ao meu ver, comovente.
         Foi em 1989 – cem anos após a proclamação da república e duzentos após a Revolução Francesa. Dois marcos históricos nada importantes para meu amigo João Carlos, o Alcapone. Para ele, nenhum acontecimento com capítulo especial nos livros de História seria mais relevante do que ocorreu naquele fim de tarde de uma quarta-feira de agosto. Na verdade, nunca mais o vi ou tive notícias dele após aquele dia.
         Aparecera ele na escola de paletó. Um paletó cinza, maior que seu tronco magro. Provavelmente fora emprestado de alguém ou pego no armário do pai. Estava também com uma camisa social, uma calça de sarja preta com cinto de couro e um mocassim. Enfim, tudo que poderia ajudá-lo a ser desmoralizado dentro da comunidade escolar. Porém, João era simplesmente Alcapone, e nada poderia ser maior do que ele mesmo e que sua vontade.
         - Você viu o Alcapone? Nossa, que louco! – não se falou em outra coisa durante a tarde. Eu mesmo não o vira. Infelizmente só pude testemunhar parte de sua derrocada.
         Alcapone foi para mim um daqueles amigos relâmpago. Conheci-o na biblioteca do colégio. Eu era da sexta série, ele, novato da quinta. Sua chegada era sempre comemorada, pois lá vinha ele com ideias de crimes, de grandes assaltos e de coisas de gângster. Sempre uma fixação por Alcapone, por armas, metralhadoras e fugas triunfais. Não precisamos então explicar a origem do apelido.
         Certo dia, Alcapone chegou à biblioteca da escola com sua mais recente invenção, um livro-simulacro. Ao que parece, na verdade, essa não era uma invenção dele, mas foi a primeira vez que vi algo do tipo. Era um livro de capa dura com as páginas todas coladas, com exceção da primeira capa e algumas folhas da frente. Porém, havia um grande pedaço recortado no meio, transformando-o em uma verdadeira caixa. Era um livro oco.
         Ao vê-lo, lembro de ter pensado, em minha inocência, que aquele sim era um estojo legal e útil, bem espaçoso e diferente. Mas logo Alcapone explicou: sua intenção com o livro-simulacro era roubar fitas-cassete. No interior do livro, era possível ajeitar duas camadas com quatro fitas cada, ou seja, dava para roubar oito fitas de uma vez.
         A ideia era interessante e original - pelo menos assim me parecia.
         - Mas para que ter tanto trabalho? Por que não usar uma mochila de uma vez? – alguém de nós perguntou.
         - O crime é uma arte! O verdadeiro crime se comete diante das pessoas sem que elas percebam. Devemos nos parecer inocentes de tal modo que qualquer acusação contra nós pareça injusta. É preciso se vestir bem, se portar bem, estar acima das suspeitas. – Alcapone mostrava sua genialidade precoce.
         Hoje me pergunto se essa era uma fala dele mesmo ou de algum filme?
         Ele continuou:
         - Se você entrar em uma loja de discos e fitas do shopping com uma mochila, o vendedor vem logo atrás de você. Em algumas lojas, eles dizem para deixar a mochila no guarda-volumes. Mas com um livro na mão apenas, com a camisa para dentro da calça e com a carteira na mão, ninguém desconfia. Nada de usar boné também.
         Eu nunca havia reparado nisso, mas parece que era verdade. Na época, as lojas não possuíam câmeras e geralmente nas seções de discos e fitas importados ficava um vendedor sempre de olho em tudo.
         Fiquei curioso sobre a “arte do crime”.
         Alcapone nos convidou para demonstrar seu método no shopping ali próximo à escola. Eu fui o único que aceitei ir com ele.
         Como pude perceber na manhã seguinte, quando marcamos de nos encontrarmos na escola, a estratégia era mais elaborada. O shopping abria às 10h.  Nossa aula era à tarde. Da escola seguimos para o alvo.
         O shopping estava praticamente vazio quando chegamos. Nele, uma loja de discos e fitas que era um verdadeiro sonho. Na parte de cima, a seção dos importados.
         Alcapone estava com o livro-simulacro, mochila e um casaco. Eu estava com um casaco e minha mochila.
         Paramos em frente à loja. Ele, confiante, disse-me apenas para segui-lo e imitá-lo. Foi o que fiz, mesmo sentindo aquela adrenalina que dá uma vontade de sair correndo.
         Entramos.
         Alcapone foi direto ao vendedor.
         - Tem um lugar que a gente possa deixar a mochila?
         O rapaz indicou um canto da loja em que havia um balcão estreito.
         - Posso deixar o casaco também?
         - Claro! – respondeu o vendedor.
         Eu também deixei o casaco e a mochila.
         Antes de sairmos daquele canto para subirmos para seção de importados, Alcapone ainda disse:
         - Nossa, estava me esquecendo de minha carteira.
         Voltou até a mochila, abriu o zíper de um pequeno bolso lateral, pegou a carteira, abriu-a e contou por cima o dinheiro que estava lá.
         Alcapone era um gênio!
         Olhou no relógio.
         Perguntou ao vendedor onde estavam as fitas importadas dos Beatles.
         O vendedor indicou a escada: - Lá em cima, podem subir!
         Alcapone mostrou-lhe o livro: - Ah, preciso deixar lá com a mochila?
         O rapaz fez um joia: - Não, tranquilo, podem subir...
         Fomos.
         Ele não veio atrás.
- Sabe por quê? – perguntou Alcapone lá em cima.
         - Ele confia em nós. – respondeu satisfeito.
         Pediu que eu escolhesse uma fita. “Let it be” foi a minha escolha. Junto dela entraram mais quatro fitas no livro.
         - Ah, que pena, meu pai já tem todas essas daqui. – exclamou como se fosse verdade, sem forçar o tom de voz.
          Descemos.
         - Você sabe se chegarão mais fitas dos Beatles?
         O vendedor não sabia responder à indagação de Alcapone.
         - É uma pena, meu pai tem já todas que eu vi aqui.
         Recolhemos nossas coisas e fomos embora, sem deixar suspeitas.
         Depois percebi que Alcapone não se interessava por nenhuma fita que pegara. O importante para ele era o método e o aprimoramento de sua estratégia. Me deu de presente a fita, que eu levei para casa e nunca tive coragem de ouvir - não sei se por pudor ou porque me fazia lembrar de Alcapone e uma das cenas mais desoladoras que vi pouco tempo depois.
         O grande furto virou lenda entre os meninos da quinta e da sexta. Eu mesmo fiz questão de narrar a desenvoltura de meu amigo, embora tenha começado a achar perigoso andar em sua companhia.
         João Carlos tinha uma conversa excêntrica. Desenhava arsenais de armas que ele compraria quando grande e fazia planos para ser o líder de sua própria máfia. As conversas, engraçadas no começo, foram ficando repetitivas e sem gosto. Mas Alcapone tinha um novo plano. Na verdade, um novo amor. E quem segura um mafioso apaixonado?
         Alcapone se apaixonara pela professora de matemática da quinta série. Ela namorava o professor de português, também da quinta. Todos sabiam. O que era isso para Alcapone senão mais um desafio a ser vencido com estratégia?
         E é a partir daqui que voltamos lá para o início.
         - Você viu o Alcapone? Ele tá de paletó e sapato? – não foram poucos a comentar a ousadia de João.
         Eu o procurei no intervalo, mas não consegui achá-lo de jeito nenhum.
         Na saída, alguém comentou:
         - O Alcapone é louco, ele foi se declarar para a professora Fabiana.
         Meu Deus, ele era louco mesmo. O que ele achou que aconteceria? Será que ele pensou que ela se mudaria para Chicago com ele?
         E então a triste cena. Eu já estava do outro lado da rua a caminho de casa e me demorando para ver se via o Alcapone sair do colégio, quando vi um imenso buquê de rosas vermelhas quase maior do que o garoto que o carregava. João Carlos foi subindo a rua desolado, com as flores voltadas para o chão. Uma situação que só de escrever faz as lágrimas virem aos olhos.
         No filme Os Intocáveis, lançado em 1987, havia a musa Catherine Ness, uma loira, mulher do grande rival do mafioso Alcapone.
         A professora Fabiana era praticamente a única mulher jovem e loira da escola.
         Naquele dia, sinto que foi a primeira e última vez que vi João de verdade. Infelizmente, que eu saiba, ele nunca mais voltou ao colégio.
          Este parágrafo então escrevo para ele:

João, só queria que soubesse que, apesar das chacotas dos colegas, sua trágica história me comove mais do que a de Alcapone. Certamente, uma dose de um bom uísque daquele carregamento clandestino que você conseguiu salvar dos federais agora não cairia mal. Se cuida, meu amigo... A fita, ainda a tenho comigo...