segunda-feira, 24 de junho de 2019

SOBRE O FILME: NA NATUREZA SELVAGEM


DASEIN EM SUA NATUREZA SELVAGEM



De joelhos não é maneira de ser livre
Levantando um copo vazio, pergunto silenciosamente
Todos meus destinos aceitarão aquele que eu sou?
Então eu posso respirar …”

Guaranteed“, música de Eddie Vedder



No filme Na Natureza Selvagem (2007), dirigido por Sean Penn, homônimo de livro escrito pelo jornalista norte-americano Jon Krakauer e publicado em 1998, apresenta-se a história verídica de uma aventura de dois anos, entre 1990 e 1992, realizada por um jovem chamado Chris McCandless, nascido em uma família abastada do leste dos EUA. Embora não seja esta a função do livro ou do filme, por meio deles é possível ilustrar alguns conceitos capitais discutidos pela chamada terceira força da psicologia, ou seja, a psicologia humanista existencial.
As experiências do jovem Chris se iniciam quando ele rompe drasticamente com a vida que lhe fora programada pelos pais, conforme as convenções próprias à sua classe social e cultura familiar. Assim, tendo se formado na faculdade, ele abandona os sonhos que não eram dele, destrói carteiras de identificação e vínculos simbólicos e concretos com a sociedade, como sua identidade e seu cartão bancário, e lança-se em uma experiência de solitude e no trato real para com a vida, sem os filtros narrativos próprios de sua cultura.
Nesse sentido, a ideia sartriana de que a existência precede a essência pode ser empregada, considerando-se que Chris até então existira, sem ter constituído propriamente sua essência, “existindo, sem ser”, porque ainda não encontrara um sentido autêntico ou uma definição autêntica de si. A viagem que intencionara realizar até o Alasca, possivelmente como representação à viagem ao si-mesmo, ainda estava para ser colocada em ação. O ato simbólico, com seus documentos e passes sociais, evidenciavam seu anseio por liberdade, que, consequentemente, exigiu-lhe o protagonismo para realizar uma escolha, bem como de assumir a responsabilidade pelos resultados advindos dela. A busca do ser, do Dasein, de Heidegger, como ente privilegiado que consegue questionar e compreender a própria existência, revela-se então como a grande força por trás das ações de Chris, que, abandonando a identidade social sobre a qual não tivera escolha, autonomeia-se Alex Supertramp, o que em uma tradução livre seria Alex Superandarilho, aquele que erra sem uma destinação fixa, mas que, em seu caso, errante, como ser objetivo no mundo, procura a estrada do próprio destino a fim de compreender pela experiência os conceitos mais profundos relativos a ser e existir em uma perspectiva diferente dos convencionalismos, ou em uma linguagem metafórica, com o intuito de conhecer o que os espaços vazios dentro de seu copo poderiam comportar. Vê-se, sobretudo, como um ente de possibilidades e potência, não como alguém que, dentro de uma perspectiva passiva em relação a si, na angústia da existência, estaria a se perguntar “onde me perdi de minha vida, o que a vida fez de mim?”. Desse modo, mais uma vez a história de Chris vai ao encontro de uma máxima de Sartre acerca da responsabilidade sobre o próprio destino, acerca do “o que se fazer com aquilo que o mundo fez de nós”, como a chave para viver verdadeiramente um projeto único e inédito do ponto de vista existencial.

Tanta gente vive em circunstâncias infelizes e, contudo, não toma a iniciativa de mudar sua situação porque está condicionada a uma vida de segurança, conformismo e conservadorismo, tudo isso que parece dar paz de espírito - mas na realidade nada é mais maléfico para o espírito aventureiro do homem que um futuro seguro.” (KRAKAUER, 1998)


A visão aparentemente romântica de Alex Supertramp de chegar ao Alasca e entrar em contato profundo com uma natureza selvagem, sem contato com outro humano que não ele mesmo, pode ser interpretada simbolicamente como sua vontade de entrar em contato com sua própria natureza selvagem, ou seja, seu ser Ente, desprovido das relações humanas que o definiriam a partir do contato com o outro. No contato com seu ente ainda desconhecido e, portanto, selvagem, poderia encontrar respostas não exatamente intelectuais para grandes questões da vida, como a Felicidade, como o Sentido da Vida, como o valor de assumir as próprias escolhas e de se responsabilizar por elas, como escapar às angústias – ou lidar de modo saudável com elas – e, em uma última análise, como realizar-se pessoalmente, não em função de normativas ou filtros estabelecidos por grupos sociais, mas dentro do prisma de seu único e realmente válido julgamento, o do olho interno de sua subjetividade.



É nas experiências, nas lembranças, na grande e triunfante alegria de viver na mais ampla plenitude que o verdadeiro sentido é encontrado.” (KRAKAUER, 1998)

Ao se considerar que Chris se dispõe a viver e experimentar a literatura que o inspira, isso porque leva consigo na viagem obras de autores como Jack London, Thoreau e Tolstoi, pode-se afirmar que ele vivencia a experiência com objetos que lhe falavam sobre o mundo, os sentimentos e as relações do ser com a natureza, com o outro e consigo, e, assim, mais do que acatar esses pensamentos como filosofia, poesia ou literatura, introjeta-os como experiência, ao sentido que Husserl propõe: centrando no indivíduo e em sua subjetividade o verdadeiro valor para o conhecimento.
Diferente do que é possível pensar, o intuito de Chris não é simplesmente isolar-se do convívio social como um homem amargurado e misantropo, antissocial e sem capacidade de empatia nem alegria de viver. Sua jornada como Alex Supertramp o leva a interagir com pessoas aparentemente desinteressantes, à margem da sociedade capitalista norte-americana, à margem dos reconhecimentos pautados por conquistas materiais ou sucesso no campo da realização familiar – a ser exposto e reconhecido socialmente. Ele interage com pessoas que vivem suas angústias e experiências delicadas, pagando por escolhas que fizeram de modo mais emocional ou racional, e a quem, ao dar ouvidos, permite ter voz. É assim com o casal Raney e Jan, a jovem Tracy, Wayne Westerberg e o solitário Ron Franz, todos que, apesar das tragédias pessoais, de alguma forma, têm suas vidas em algum ponto ressignificadas com o rápido contato com Alex. Ele os ouve, aprende com eles, porém mais como um filósofo empático – ou um terapeuta , do que como alguém que, identificado-se com os sofrimentos alheios, responde emocionalmente a isso com o desejo de apresentar uma solução ou julgamento - pois, provavelmente, ao romper com as instituições sociais para vir-a-ser, ele decidiu como não deveria ser e, portanto, agir.
Logo, sua história não trata exatamente sobre solidão, mas do uso e experiência da solitude, que o levará ao Alasca e lhe propiciará ter contato com a vida selvagem em seus múltiplos aspectos. Não seria ela possivelmente a experiência definitiva e cristalizada de estar só, mas a experiência de respostas e de contato com uma essência mais profunda e capaz de responder a um desejo de Chris-Alex de encontrar e vivenciar um sentido para sua existência. Contudo, a morte, enquanto ele estava em estado de isolamento social, após dois anos dessa aventura de conhecimento e autoconhecimento, forneceu a Chris-Alex também uma compreensão empírica que não deve ser percebida como um arrependimento ou uma grande moral para que outros não busquem experiências como a dele, mas sim como uma exaltação à vida e ao potencial humano de interagir em bases mais profundas e para além dos convencionalismos e filtros sociais. Conclui Chris-Alex, em sua jornada interrompida: “Felicidade só é real quando compartilhada”. Deixa ele uma afirmação simples para não ser explicada em tratados filosóficos, tampouco debatida, contestada ou defendida. Se é possível assim dizer, sua afirmação propõe a experiência do compartilhamento das emoções em seu sentido mais genuíno e puro, dentro da dimensão em princípio humana e, mais do que é comum à média humana, na dimensão transcendente e capaz de conferir ao ente que pensa a si próprio uma energia vital para se relacionar com a realidade e seus desafios com maior serenidade e autonomia.



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