DASEIN EM SUA NATUREZA SELVAGEM
“De joelhos não é maneira de ser
livre
Levantando um copo vazio, pergunto
silenciosamente
Todos meus destinos aceitarão aquele
que eu sou?
Então eu posso respirar …”
“Guaranteed“, música de Eddie
Vedder
No filme Na Natureza Selvagem (2007),
dirigido por Sean Penn, homônimo de livro escrito pelo jornalista
norte-americano Jon Krakauer e publicado em 1998, apresenta-se a
história verídica de uma aventura de dois anos, entre 1990 e 1992,
realizada por um jovem chamado Chris McCandless, nascido em uma
família abastada do leste dos EUA. Embora não seja esta a função
do livro ou do filme, por meio deles é possível ilustrar alguns
conceitos capitais discutidos pela chamada terceira força da
psicologia, ou seja, a psicologia humanista existencial.
As experiências do jovem Chris se
iniciam quando ele rompe drasticamente com a vida que lhe fora
programada pelos pais, conforme as convenções próprias à sua
classe social e cultura familiar. Assim, tendo se formado na
faculdade, ele abandona os sonhos que não eram dele, destrói
carteiras de identificação e vínculos simbólicos e concretos com
a sociedade, como sua identidade e seu cartão bancário, e lança-se
em uma experiência de solitude e no trato real para com a vida, sem
os filtros narrativos próprios de sua cultura.
Nesse sentido, a ideia sartriana de
que a existência precede a essência pode ser empregada,
considerando-se que Chris até então existira, sem ter constituído
propriamente sua essência, “existindo, sem ser”, porque ainda
não encontrara um sentido autêntico ou uma definição autêntica
de si. A viagem que intencionara realizar até o Alasca,
possivelmente como representação à viagem ao si-mesmo, ainda
estava para ser colocada em ação. O ato simbólico, com seus
documentos e passes sociais, evidenciavam seu anseio por liberdade,
que, consequentemente, exigiu-lhe o protagonismo para realizar uma
escolha, bem como de assumir a responsabilidade pelos resultados
advindos dela. A busca do ser, do Dasein, de Heidegger, como ente
privilegiado que consegue questionar e compreender a própria
existência, revela-se então como a grande força por trás das
ações de Chris, que, abandonando a identidade social sobre a qual
não tivera escolha, autonomeia-se Alex Supertramp, o que em uma
tradução livre seria Alex Superandarilho, aquele que erra sem uma
destinação fixa, mas que, em seu caso, errante, como ser objetivo
no mundo, procura a estrada do próprio destino a fim de compreender
pela experiência os conceitos mais profundos relativos a ser e
existir em uma perspectiva diferente dos convencionalismos, ou em uma
linguagem metafórica, com o intuito de conhecer o que os espaços
vazios dentro de seu copo poderiam comportar. Vê-se, sobretudo, como
um ente de possibilidades e potência, não como alguém que, dentro
de uma perspectiva passiva em relação a si, na angústia da
existência, estaria a se perguntar “onde me perdi de minha vida, o
que a vida fez de mim?”. Desse modo, mais uma vez a história de
Chris vai ao encontro de uma máxima de Sartre acerca da
responsabilidade sobre o próprio destino, acerca do “o que se
fazer com aquilo que o mundo fez de nós”, como a chave para viver
verdadeiramente um projeto único e inédito do ponto de vista
existencial.
“Tanta gente vive em circunstâncias
infelizes e, contudo, não toma a iniciativa de mudar sua situação
porque está condicionada a uma vida de segurança, conformismo e
conservadorismo, tudo isso que parece dar paz de espírito - mas na
realidade nada é mais maléfico para o espírito aventureiro do
homem que um futuro seguro.” (KRAKAUER, 1998)
A visão aparentemente romântica de
Alex Supertramp de chegar ao Alasca e entrar em contato profundo com
uma natureza selvagem, sem contato com outro humano que não ele
mesmo, pode ser interpretada simbolicamente como sua vontade de
entrar em contato com sua própria natureza selvagem, ou seja, seu
ser Ente, desprovido das relações humanas que o definiriam a partir
do contato com o outro. No contato com seu ente ainda desconhecido e,
portanto, selvagem, poderia encontrar respostas não exatamente
intelectuais para grandes questões da vida, como a Felicidade, como
o Sentido da Vida, como o valor de assumir as próprias escolhas e de
se responsabilizar por elas, como escapar às angústias – ou lidar
de modo saudável com elas – e, em uma última análise, como
realizar-se pessoalmente, não em função de normativas ou filtros
estabelecidos por grupos sociais, mas dentro do prisma de seu único
e realmente válido julgamento, o do olho interno de sua
subjetividade.
“É nas experiências, nas
lembranças, na grande e triunfante alegria de viver na mais ampla
plenitude que o verdadeiro sentido é encontrado.” (KRAKAUER, 1998)
Ao se considerar que Chris se dispõe
a viver e experimentar a literatura que o inspira, isso porque leva
consigo na viagem obras de autores como Jack London, Thoreau e
Tolstoi, pode-se afirmar que ele vivencia a experiência com objetos
que lhe falavam sobre o mundo, os sentimentos e as relações do ser
com a natureza, com o outro e consigo, e, assim, mais do que acatar
esses pensamentos como filosofia, poesia ou literatura, introjeta-os
como experiência, ao sentido que Husserl propõe: centrando no
indivíduo e em sua subjetividade o verdadeiro valor para o
conhecimento.
Diferente do que é possível pensar,
o intuito de Chris não é simplesmente isolar-se do convívio social
como um homem amargurado e misantropo, antissocial e sem capacidade
de empatia nem alegria de viver. Sua jornada como Alex Supertramp o
leva a interagir com pessoas aparentemente desinteressantes, à
margem da sociedade capitalista norte-americana, à margem dos
reconhecimentos pautados por conquistas materiais ou sucesso no campo
da realização familiar – a ser exposto e reconhecido socialmente.
Ele interage com pessoas que vivem suas angústias e experiências
delicadas, pagando por escolhas que fizeram de modo mais emocional ou
racional, e a quem, ao dar ouvidos, permite ter voz. É assim com o
casal Raney e Jan, a jovem Tracy, Wayne Westerberg e o solitário Ron
Franz, todos que, apesar das tragédias pessoais, de alguma forma,
têm suas vidas em algum ponto ressignificadas com o rápido contato
com Alex. Ele os ouve, aprende com eles, porém mais como um filósofo
empático – ou um terapeuta ,
do que como alguém que, identificado-se com os sofrimentos alheios,
responde emocionalmente a isso com o desejo de apresentar uma solução
ou julgamento - pois, provavelmente, ao romper com as instituições
sociais para vir-a-ser, ele decidiu como não deveria ser e,
portanto, agir.
Logo,
sua história não trata exatamente sobre solidão, mas do uso e
experiência da solitude, que o levará ao Alasca e lhe propiciará
ter contato com a vida selvagem em seus múltiplos aspectos. Não
seria ela possivelmente a experiência definitiva e cristalizada de
estar só, mas a experiência de respostas e de contato com uma
essência mais profunda e capaz de responder a um desejo de
Chris-Alex de encontrar e vivenciar um sentido para sua existência.
Contudo, a morte, enquanto ele estava em estado de isolamento social,
após dois anos dessa aventura de conhecimento e autoconhecimento,
forneceu a Chris-Alex também uma compreensão empírica que não
deve ser percebida como um arrependimento ou uma grande moral para
que outros não busquem experiências como a dele, mas sim como uma
exaltação à vida e ao potencial humano de interagir em bases mais
profundas e para além dos convencionalismos e filtros sociais.
Conclui Chris-Alex, em sua jornada interrompida: “Felicidade
só é real quando compartilhada”. Deixa ele uma afirmação
simples para não ser explicada em tratados filosóficos, tampouco
debatida, contestada ou defendida. Se é possível assim dizer, sua
afirmação propõe a experiência do compartilhamento das emoções
em seu sentido mais genuíno e puro, dentro da dimensão em princípio
humana e, mais do que é comum à média humana, na dimensão
transcendente e capaz de conferir ao ente que pensa a si próprio uma
energia vital para se relacionar com a realidade e seus desafios com
maior serenidade e autonomia.
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