segunda-feira, 24 de junho de 2019

FILME: A ONDA

EVENTOS DO FILME DIE WELLE À LUZ DA PSICANÁLISE


No volume de número 18 das obras completas de Freud, o fundador da Psicanálise investiga, entre outros fenômenos sociais, o comportamento e a psicologia das massas, a partir da retomada de conceitos desenvolvidos por outros autores sobre os quais ele faz observações e a cujas teorias ele complementa com novas hipóteses. Desse modo, Freud, na tentativa de explicar fenômenos sociais coletivos, lança mão de termos como Ego Ideal, Ideal de Ego, Superego, Id, Instinto Gregário, Identificação, Imitação, Sugestão e Libido, entre outros.

Sendo assim, o repertório de conceitos legados pela psicanálise, para refletir sobre os fenômenos de massa, servem com um rico instrumental para, neste caso, analisar os eventos principais que compõem o enredo do filme alemão Die Welle, de 2008, nomeado em português como A Onda, dirigido por Dennis Gansel e inspirado no livro homônimo de 1981 do autor americano Todd Strasser, bem como no experimento social de seis dias chamado de a Terceira Onda e realizado pelo professor de história norte-americano Ron Jones.

No filme, a trama se inicia quando o professor Rainer Wenger, diante de uma turma de alunos de ensino médio, desinteressados, propõe a si e a eles o desafio de ensinar-lhes sobre autocracia por meio de uma experiência social, de modo a provar-lhes que, embora alguns não acreditem, o nazi-fascismo pode voltar a ocorrer na história alemã ou em qualquer parte do mundo.

Para tanto, o professor, de forma persuasiva, em vez de apresentar teorias, propõe que o grupo, inicialmente disperso e sem identidade, adote certos comportamentos e experimente seus efeitos durante a primeira aula. São eles: ajeitar a postura, responder e perguntar de maneira sucinta e disciplinada, e agir praticamente de modo uniforme, como um só corpo. Wenger não impõe esses comportamentos, mas os sugere de maneira que os adolescentes sintam uma relação empática com ele e tenham prazer ao realizar as ações propostas, o que é reforçado pela fala de aprovação do “líder” e seu discurso de superioridade. Ele também reforça uma rivalidade de sua turma contra a turma da aula sobre anarquismo, cujo professor era aversivo e teria sido o maior motivo para que os alunos, evitando-o, aderissem às aulas eletivas de Wenger.

Diante desse simples cenário, já é possível identificar o papel carismático e sugestivo adquirido por Wenger – a exemplo do que é descrito na obra de Freud -, que, ganha notoriedade entre os alunos e adquire uma função quase absoluta de liderança, uma vez que sua influência exacerba as emoções dos alunos – já predispostos a isso – enquanto diminui-lhes a vigilância crítica sobre o processo a que passam a ser submetidos. O grupo, portanto, inicialmente disperso, começa a ganhar coesão e potencial para agir como um só corpo. São motivados pelo prazer da experiência e, mais tarde, pelo clima de fraternidade entre os pares, ou, como chamou Freud, pela libido que une a massa em torno do líder e, ao mesmo tempo, elege um inimigo – ou inimigos – a quem odiar e, consequentemente, confrontar.

A fim de tornar o grupo ainda mais coeso, Wenger apresenta-lhes o lema “Força pela disciplina”, reforçando o ganho coletivo no âmbito intelectual e fraternal  ao se adotarem práticas de conduta em função do interesse comum do grupo, fazendo frente, assim, ao individualismo, segundo ele, resultante de um sistema democrático.
Combate-se ainda a ideia de individualidade, ao se propor também um uniforme – calça jeans e camiseta branca -, uma saudação gestual e um nome – A Onda - para o grupo, os quais, sendo desrespeitados pelas jovens Mona e Karo, culmina em seu banimento da turma.

Nesse sentido, a polarização da percepção dos indivíduos da “massa”, ao mesmo tempo serve para fortalecer sua coesão e afirmar sua identidade socialmente. A violência simbólica da rejeição sobre alguns indivíduos que não se rendem ao comportamento comum atua, principalmente, sobre os instintos gregários e de sobrevivência dos alunos mais indecisos acerca de permanecer ou não nA Onda, cuja ação de ficar com a turma é motivada por emoções como medo da agressão, da rejeição, concomitantemente ao desejo de aceitação e proteção propiciada pelo grupo.

É interessante observar que, ainda durante os acontecimentos iniciais do enredo, diferenças étnicas conflituosas e de grupos de bullying e de oprimidos são amainadas pela sensação comum de pertencimento À Onda, como se a energia de libido criada e alimentada pelo grupo estabelecesse mais pontos de identificação entre os diferentes do que propriamente de distinção, ilustrando os conceitos desenvolvidos por Freud. Assim, personagens como um rapaz de origem turca, um garoto (Tim) desprovido de afeto de seus pais – alvo de perseguições, violência e rejeição – e Bomber – um clássico bully -, surpreendentemente passam a se ver como membros de uma família artificial e com enorme poder de sugestão sobre seus indivíduos, à qual se deve a todo custo proteger.

Assim, em poucos dias, o grupo ganha, por identificação, novos adeptos, inclusive fora de sala de aula, e também novos inimigos, cuja coesão passa a se fortalecer motivada pela oposição À Onda. Distante dos olhos de seu líder carismático, Wengel, que não precisa mais persuadir ninguém com seus comandos, utilizando-se somente de frases curtas e imperativas incontestavelmente obedecidas, o grupo adquire condutas próprias de autopreservação, organização – celebrando festas, pichando símbolos pela cidade, fazendo carteirinhas de integrantes e agindo conforme uma lei interna e não declarada, ou seja, pelo poder de sugestão e imitação a que Freud tratou na obra que serve como base a esta análise.

Em especial, a respeito de Tim, possivelmente por seu histórico de carência afetiva paterna e materna, bem como da rejeição pelo grupo anterior à formação dA Onda, pode-se afirmar que ele entra em processo de profunda identificação com o grupo, sofrendo praticamente com maior intensidade todas as influências do comportamento que caracteriza as massas, ou seja, baixa capacidade crítica e de autocrítica, função de ideal de ego em relação ao professor – ego ideal - , imitação dos membros do grupo, alto nível de sugestão – em vez de pichar muros com o símbolo dA Onda, ele coloca-se em risco ao pichar o alto de um edifício -, atualização de um processo hipnótico primevo, projetando em Wenger o líder-deus, o pai, a quem ele propõe proteger com a vida, embora estivesse o professor longe de correr risco algum, e ao qual, próximo ao desfecho da trama, intenciona matar, temendo que este coloque fim à grande fraternidade, à grande família libidinal à qual ele se sentiu pertencente, na qual se sentiu protegido e afetivamente reconhecido e ligado.
Em última instância, é essa personagem que representa o ápice a que a massa, sob a sugestão de um líder carismático e manipulador, pode chegar.

Sendo este um grupo artificialmente criado, como um experimento social de um professor, tratou-se do que Freud definiu como um grupo efêmero, fadado a um fim. Em desfecho trágico, Wenger, com a intenção de retirar os membros dA Onda de sua condição quase hipnótica, libidinal, altamente coesa e sugestionada, profere o seguinte discurso que atesta a síntese a qual ilustra sua aula e tese sobre autarquias:

“Vocês trocaram sua liberdade pelo luxo de se sentirem superiores. Todos vocês teriam sido bons nazi-fascistas. Certamente iriam vestir uma farda, virar a cabeça e permitir que seus amigos e vizinhos fossem perseguidos e destruídos. O fascismo não é uma coisa que outras pessoas fizeram. Ele está aqui mesmo em todos nós. Vocês perguntam: como que o povo alemão pôde ficar impassível enquanto milhares de inocentes seres humanos eram assassinados? Como alegar que não estavam envolvidos. O que faz um povo renegar sua própria história? Pois é assim que a história se repete. Vocês todos vão querer negar o que se passou em “A Onda’. Nossa experiência foi um sucesso. Terão ao menos aprendido que somos responsáveis pelos nossos atos. Vocês devem se interrogar: o que fazer em vez de seguir cegamente um líder? E que pelo resto de suas vidas nunca permitirão que a vontade de um grupo usurpe seus direitos individuais. Como é difícil ter que suportar que tudo isso não passou de uma grande vontade e de um sonho”.













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