Crime,
Amor e Verdade
Tenho de confessar, estou muito feliz
com o título desta crônica. Penso que ele cabe como uma luva e é bem fiel ao
que estou prestes a narrar. Isso pelo fato de eu acreditar que, embora o caso
em si não dê um romance ou filme, ele possui combinados três ingredientes que
costumam mexer com as multidões de leitores e espetadores que procuram uma
ótima história; a saber: crime, amor e verdade. Trata-se, portanto, de uma
história real e, ao meu ver, comovente.
Foi em 1989 – cem anos após a
proclamação da república e duzentos após a Revolução Francesa. Dois marcos
históricos nada importantes para meu amigo João Carlos, o Alcapone. Para ele, nenhum
acontecimento com capítulo especial nos livros de História seria mais relevante
do que ocorreu naquele fim de tarde de uma quarta-feira de agosto. Na verdade,
nunca mais o vi ou tive notícias dele após aquele dia.
Aparecera ele na escola de paletó. Um
paletó cinza, maior que seu tronco magro. Provavelmente fora emprestado de
alguém ou pego no armário do pai. Estava também com uma camisa social, uma
calça de sarja preta com cinto de couro e um mocassim. Enfim, tudo que poderia
ajudá-lo a ser desmoralizado dentro da comunidade escolar. Porém, João era
simplesmente Alcapone, e nada poderia ser maior do que ele mesmo e que sua
vontade.
- Você viu o Alcapone? Nossa, que
louco! – não se falou em outra coisa durante a tarde. Eu mesmo não o vira.
Infelizmente só pude testemunhar parte de sua derrocada.
Alcapone foi para mim um daqueles
amigos relâmpago. Conheci-o na biblioteca do colégio. Eu era da sexta série,
ele, novato da quinta. Sua chegada era sempre comemorada, pois lá vinha ele com
ideias de crimes, de grandes assaltos e de coisas de gângster. Sempre uma
fixação por Alcapone, por armas, metralhadoras e fugas triunfais. Não
precisamos então explicar a origem do apelido.
Certo dia, Alcapone chegou à biblioteca
da escola com sua mais recente invenção, um livro-simulacro. Ao que parece, na
verdade, essa não era uma invenção dele, mas foi a primeira vez que vi algo do
tipo. Era um livro de capa dura com as páginas todas coladas, com exceção da
primeira capa e algumas folhas da frente. Porém, havia um grande pedaço
recortado no meio, transformando-o em uma verdadeira caixa. Era um livro oco.
Ao vê-lo, lembro de ter pensado, em
minha inocência, que aquele sim era um estojo legal e útil, bem espaçoso e
diferente. Mas logo Alcapone explicou: sua intenção com o livro-simulacro era
roubar fitas-cassete. No interior do livro, era possível ajeitar duas camadas
com quatro fitas cada, ou seja, dava para roubar oito fitas de uma vez.
A ideia era interessante e original -
pelo menos assim me parecia.
- Mas para que ter tanto trabalho? Por
que não usar uma mochila de uma vez? – alguém de nós perguntou.
- O crime é uma arte! O verdadeiro
crime se comete diante das pessoas sem que elas percebam. Devemos nos parecer inocentes
de tal modo que qualquer acusação contra nós pareça injusta. É preciso se
vestir bem, se portar bem, estar acima das suspeitas. – Alcapone mostrava sua
genialidade precoce.
Hoje me pergunto se essa era uma fala
dele mesmo ou de algum filme?
Ele continuou:
- Se você entrar em uma loja de discos
e fitas do shopping com uma mochila, o vendedor vem logo atrás de você. Em
algumas lojas, eles dizem para deixar a mochila no guarda-volumes. Mas com um
livro na mão apenas, com a camisa para dentro da calça e com a carteira na mão,
ninguém desconfia. Nada de usar boné também.
Eu nunca havia reparado nisso, mas
parece que era verdade. Na época, as lojas não possuíam câmeras e geralmente
nas seções de discos e fitas importados ficava um vendedor sempre de olho em
tudo.
Fiquei curioso sobre a “arte do crime”.
Alcapone nos convidou para demonstrar
seu método no shopping ali próximo à escola. Eu fui o único que aceitei ir com
ele.
Como pude perceber na manhã seguinte,
quando marcamos de nos encontrarmos na escola, a estratégia era mais elaborada.
O shopping abria às 10h. Nossa aula era
à tarde. Da escola seguimos para o alvo.
O shopping estava praticamente vazio
quando chegamos. Nele, uma loja de discos e fitas que era um verdadeiro sonho.
Na parte de cima, a seção dos importados.
Alcapone estava com o livro-simulacro,
mochila e um casaco. Eu estava com um casaco e minha mochila.
Paramos em frente à loja. Ele,
confiante, disse-me apenas para segui-lo e imitá-lo. Foi o que fiz, mesmo
sentindo aquela adrenalina que dá uma vontade de sair correndo.
Entramos.
Alcapone foi direto ao vendedor.
- Tem um lugar que a gente possa deixar
a mochila?
O rapaz indicou um canto da loja em que
havia um balcão estreito.
- Posso deixar o casaco também?
- Claro! – respondeu o vendedor.
Eu também deixei o casaco e a mochila.
Antes de sairmos daquele canto para
subirmos para seção de importados, Alcapone ainda disse:
- Nossa, estava me esquecendo de minha
carteira.
Voltou até a mochila, abriu o zíper de
um pequeno bolso lateral, pegou a carteira, abriu-a e contou por cima o
dinheiro que estava lá.
Alcapone era um gênio!
Olhou no relógio.
Perguntou ao vendedor onde estavam as
fitas importadas dos Beatles.
O vendedor indicou a escada: - Lá em
cima, podem subir!
Alcapone mostrou-lhe o livro: - Ah,
preciso deixar lá com a mochila?
O rapaz fez um joia: - Não, tranquilo,
podem subir...
Fomos.
Ele não veio atrás.
- Sabe por quê? –
perguntou Alcapone lá em cima.
- Ele confia em nós. – respondeu satisfeito.
Pediu que eu escolhesse uma fita. “Let
it be” foi a minha escolha. Junto dela entraram mais quatro fitas no livro.
- Ah, que pena, meu pai já tem todas
essas daqui. – exclamou como se fosse verdade, sem forçar o tom de voz.
Descemos.
- Você sabe se chegarão mais fitas dos
Beatles?
O vendedor não sabia responder à
indagação de Alcapone.
- É uma pena, meu pai tem já todas que
eu vi aqui.
Recolhemos nossas coisas e fomos
embora, sem deixar suspeitas.
Depois percebi que Alcapone não se
interessava por nenhuma fita que pegara. O importante para ele era o método e o
aprimoramento de sua estratégia. Me deu de presente a fita, que eu levei para
casa e nunca tive coragem de ouvir - não sei se por pudor ou porque me fazia
lembrar de Alcapone e uma das cenas mais desoladoras que vi pouco tempo depois.
O grande furto virou lenda entre os
meninos da quinta e da sexta. Eu mesmo fiz questão de narrar a desenvoltura de
meu amigo, embora tenha começado a achar perigoso andar em sua companhia.
João Carlos tinha uma conversa
excêntrica. Desenhava arsenais de armas que ele compraria quando grande e fazia
planos para ser o líder de sua própria máfia. As conversas, engraçadas no
começo, foram ficando repetitivas e sem gosto. Mas Alcapone tinha um novo
plano. Na verdade, um novo amor. E quem segura um mafioso apaixonado?
Alcapone se apaixonara pela professora
de matemática da quinta série. Ela namorava o professor de português, também da
quinta. Todos sabiam. O que era isso para Alcapone senão mais um desafio a ser
vencido com estratégia?
E é a partir daqui que voltamos lá para
o início.
- Você viu o Alcapone? Ele tá de paletó
e sapato? – não foram poucos a comentar a ousadia de João.
Eu o procurei no intervalo, mas não
consegui achá-lo de jeito nenhum.
Na saída, alguém comentou:
- O Alcapone é louco, ele foi se
declarar para a professora Fabiana.
Meu Deus, ele era louco mesmo. O que
ele achou que aconteceria? Será que ele pensou que ela se mudaria para Chicago
com ele?
E então a triste cena. Eu já estava do
outro lado da rua a caminho de casa e me demorando para ver se via o Alcapone
sair do colégio, quando vi um imenso buquê de rosas vermelhas quase maior do
que o garoto que o carregava. João Carlos foi subindo a rua desolado, com as
flores voltadas para o chão. Uma situação que só de escrever faz as lágrimas
virem aos olhos.
No filme Os Intocáveis, lançado em
1987, havia a musa Catherine Ness, uma loira, mulher do grande rival do mafioso
Alcapone.
A professora Fabiana era praticamente a
única mulher jovem e loira da escola.
Naquele dia, sinto que foi a primeira e
última vez que vi João de verdade. Infelizmente, que eu saiba, ele nunca mais
voltou ao colégio.
Este
parágrafo então escrevo para ele:
João, só queria que
soubesse que, apesar das chacotas dos colegas, sua trágica história me comove
mais do que a de Alcapone. Certamente, uma dose de um bom uísque daquele
carregamento clandestino que você conseguiu salvar dos federais agora não
cairia mal. Se cuida, meu amigo... A fita, ainda a tenho comigo...
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