segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Crime, Amor e Verdade

Crime, Amor e Verdade

         Tenho de confessar, estou muito feliz com o título desta crônica. Penso que ele cabe como uma luva e é bem fiel ao que estou prestes a narrar. Isso pelo fato de eu acreditar que, embora o caso em si não dê um romance ou filme, ele possui combinados três ingredientes que costumam mexer com as multidões de leitores e espetadores que procuram uma ótima história; a saber: crime, amor e verdade. Trata-se, portanto, de uma história real e, ao meu ver, comovente.
         Foi em 1989 – cem anos após a proclamação da república e duzentos após a Revolução Francesa. Dois marcos históricos nada importantes para meu amigo João Carlos, o Alcapone. Para ele, nenhum acontecimento com capítulo especial nos livros de História seria mais relevante do que ocorreu naquele fim de tarde de uma quarta-feira de agosto. Na verdade, nunca mais o vi ou tive notícias dele após aquele dia.
         Aparecera ele na escola de paletó. Um paletó cinza, maior que seu tronco magro. Provavelmente fora emprestado de alguém ou pego no armário do pai. Estava também com uma camisa social, uma calça de sarja preta com cinto de couro e um mocassim. Enfim, tudo que poderia ajudá-lo a ser desmoralizado dentro da comunidade escolar. Porém, João era simplesmente Alcapone, e nada poderia ser maior do que ele mesmo e que sua vontade.
         - Você viu o Alcapone? Nossa, que louco! – não se falou em outra coisa durante a tarde. Eu mesmo não o vira. Infelizmente só pude testemunhar parte de sua derrocada.
         Alcapone foi para mim um daqueles amigos relâmpago. Conheci-o na biblioteca do colégio. Eu era da sexta série, ele, novato da quinta. Sua chegada era sempre comemorada, pois lá vinha ele com ideias de crimes, de grandes assaltos e de coisas de gângster. Sempre uma fixação por Alcapone, por armas, metralhadoras e fugas triunfais. Não precisamos então explicar a origem do apelido.
         Certo dia, Alcapone chegou à biblioteca da escola com sua mais recente invenção, um livro-simulacro. Ao que parece, na verdade, essa não era uma invenção dele, mas foi a primeira vez que vi algo do tipo. Era um livro de capa dura com as páginas todas coladas, com exceção da primeira capa e algumas folhas da frente. Porém, havia um grande pedaço recortado no meio, transformando-o em uma verdadeira caixa. Era um livro oco.
         Ao vê-lo, lembro de ter pensado, em minha inocência, que aquele sim era um estojo legal e útil, bem espaçoso e diferente. Mas logo Alcapone explicou: sua intenção com o livro-simulacro era roubar fitas-cassete. No interior do livro, era possível ajeitar duas camadas com quatro fitas cada, ou seja, dava para roubar oito fitas de uma vez.
         A ideia era interessante e original - pelo menos assim me parecia.
         - Mas para que ter tanto trabalho? Por que não usar uma mochila de uma vez? – alguém de nós perguntou.
         - O crime é uma arte! O verdadeiro crime se comete diante das pessoas sem que elas percebam. Devemos nos parecer inocentes de tal modo que qualquer acusação contra nós pareça injusta. É preciso se vestir bem, se portar bem, estar acima das suspeitas. – Alcapone mostrava sua genialidade precoce.
         Hoje me pergunto se essa era uma fala dele mesmo ou de algum filme?
         Ele continuou:
         - Se você entrar em uma loja de discos e fitas do shopping com uma mochila, o vendedor vem logo atrás de você. Em algumas lojas, eles dizem para deixar a mochila no guarda-volumes. Mas com um livro na mão apenas, com a camisa para dentro da calça e com a carteira na mão, ninguém desconfia. Nada de usar boné também.
         Eu nunca havia reparado nisso, mas parece que era verdade. Na época, as lojas não possuíam câmeras e geralmente nas seções de discos e fitas importados ficava um vendedor sempre de olho em tudo.
         Fiquei curioso sobre a “arte do crime”.
         Alcapone nos convidou para demonstrar seu método no shopping ali próximo à escola. Eu fui o único que aceitei ir com ele.
         Como pude perceber na manhã seguinte, quando marcamos de nos encontrarmos na escola, a estratégia era mais elaborada. O shopping abria às 10h.  Nossa aula era à tarde. Da escola seguimos para o alvo.
         O shopping estava praticamente vazio quando chegamos. Nele, uma loja de discos e fitas que era um verdadeiro sonho. Na parte de cima, a seção dos importados.
         Alcapone estava com o livro-simulacro, mochila e um casaco. Eu estava com um casaco e minha mochila.
         Paramos em frente à loja. Ele, confiante, disse-me apenas para segui-lo e imitá-lo. Foi o que fiz, mesmo sentindo aquela adrenalina que dá uma vontade de sair correndo.
         Entramos.
         Alcapone foi direto ao vendedor.
         - Tem um lugar que a gente possa deixar a mochila?
         O rapaz indicou um canto da loja em que havia um balcão estreito.
         - Posso deixar o casaco também?
         - Claro! – respondeu o vendedor.
         Eu também deixei o casaco e a mochila.
         Antes de sairmos daquele canto para subirmos para seção de importados, Alcapone ainda disse:
         - Nossa, estava me esquecendo de minha carteira.
         Voltou até a mochila, abriu o zíper de um pequeno bolso lateral, pegou a carteira, abriu-a e contou por cima o dinheiro que estava lá.
         Alcapone era um gênio!
         Olhou no relógio.
         Perguntou ao vendedor onde estavam as fitas importadas dos Beatles.
         O vendedor indicou a escada: - Lá em cima, podem subir!
         Alcapone mostrou-lhe o livro: - Ah, preciso deixar lá com a mochila?
         O rapaz fez um joia: - Não, tranquilo, podem subir...
         Fomos.
         Ele não veio atrás.
- Sabe por quê? – perguntou Alcapone lá em cima.
         - Ele confia em nós. – respondeu satisfeito.
         Pediu que eu escolhesse uma fita. “Let it be” foi a minha escolha. Junto dela entraram mais quatro fitas no livro.
         - Ah, que pena, meu pai já tem todas essas daqui. – exclamou como se fosse verdade, sem forçar o tom de voz.
          Descemos.
         - Você sabe se chegarão mais fitas dos Beatles?
         O vendedor não sabia responder à indagação de Alcapone.
         - É uma pena, meu pai tem já todas que eu vi aqui.
         Recolhemos nossas coisas e fomos embora, sem deixar suspeitas.
         Depois percebi que Alcapone não se interessava por nenhuma fita que pegara. O importante para ele era o método e o aprimoramento de sua estratégia. Me deu de presente a fita, que eu levei para casa e nunca tive coragem de ouvir - não sei se por pudor ou porque me fazia lembrar de Alcapone e uma das cenas mais desoladoras que vi pouco tempo depois.
         O grande furto virou lenda entre os meninos da quinta e da sexta. Eu mesmo fiz questão de narrar a desenvoltura de meu amigo, embora tenha começado a achar perigoso andar em sua companhia.
         João Carlos tinha uma conversa excêntrica. Desenhava arsenais de armas que ele compraria quando grande e fazia planos para ser o líder de sua própria máfia. As conversas, engraçadas no começo, foram ficando repetitivas e sem gosto. Mas Alcapone tinha um novo plano. Na verdade, um novo amor. E quem segura um mafioso apaixonado?
         Alcapone se apaixonara pela professora de matemática da quinta série. Ela namorava o professor de português, também da quinta. Todos sabiam. O que era isso para Alcapone senão mais um desafio a ser vencido com estratégia?
         E é a partir daqui que voltamos lá para o início.
         - Você viu o Alcapone? Ele tá de paletó e sapato? – não foram poucos a comentar a ousadia de João.
         Eu o procurei no intervalo, mas não consegui achá-lo de jeito nenhum.
         Na saída, alguém comentou:
         - O Alcapone é louco, ele foi se declarar para a professora Fabiana.
         Meu Deus, ele era louco mesmo. O que ele achou que aconteceria? Será que ele pensou que ela se mudaria para Chicago com ele?
         E então a triste cena. Eu já estava do outro lado da rua a caminho de casa e me demorando para ver se via o Alcapone sair do colégio, quando vi um imenso buquê de rosas vermelhas quase maior do que o garoto que o carregava. João Carlos foi subindo a rua desolado, com as flores voltadas para o chão. Uma situação que só de escrever faz as lágrimas virem aos olhos.
         No filme Os Intocáveis, lançado em 1987, havia a musa Catherine Ness, uma loira, mulher do grande rival do mafioso Alcapone.
         A professora Fabiana era praticamente a única mulher jovem e loira da escola.
         Naquele dia, sinto que foi a primeira e última vez que vi João de verdade. Infelizmente, que eu saiba, ele nunca mais voltou ao colégio.
          Este parágrafo então escrevo para ele:

João, só queria que soubesse que, apesar das chacotas dos colegas, sua trágica história me comove mais do que a de Alcapone. Certamente, uma dose de um bom uísque daquele carregamento clandestino que você conseguiu salvar dos federais agora não cairia mal. Se cuida, meu amigo... A fita, ainda a tenho comigo...



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