quinta-feira, 8 de junho de 2017

Entrevistas e empregos abusivos



De fato, parece que não estamos preparados para as primeiras experiências. Depois, quando as analisamos, nos damos conta de muitas coisas, entre elas de abusos que sofremos ou de reações que gostaríamos de ter tido e, por nos tornarmos reféns do inusitado, simplesmente fomos incapazes de tê-las. Creio que essa ideia se aplica a milhares de situações, mas gostaria de relatar especificamente algumas experiências que tive no campo de trabalho. Se forem úteis a alguém, fico feliz, mas confesso que para mim pesa menos a utilidade pública do que a catarse de escrever sobre elas.

A primeira delas, digna de nota, deu-se em meu primeiro emprego como professor. O diretor da escola me abordou no final do ano e disse que gostaria que eu fosse à formatura da 3ª série do ensino médio. Naquela época, eu não dava aulas oficialmente para essa turma nem para nenhuma outra que estivesse se formando. Disse a ele que não iria, pois além de não gostar de festas solenes, não acreditava que minha presença tivesse algum valor real no contexto. Sinceridade é um defeito?

Ele não disse mais nada.

No dia seguinte me comunicou que se eu não fosse a tal formatura, a mantenedora da escola iria me demitir.

O que eu fiz, senhoras e senhores?

Fui.

Pouco tempo depois, saí dessa escola e me tornei bancário concursado, aparentemente livre de despotismos. Essa parecia uma posição mais cômoda, mas nem sempre e nem tanto.

Trabalhava em uma agência na região central de São Paulo, onde havia milhares de contas de servidores públicos.

Pouco tempo depois de tomar posse no concurso, uma outra colega também veio trabalhar na mesma agência. Foi então que ela recebeu uma incumbência: sentar-se diante de um terminal e cometer um crime. Ela deveria mudar a condição das contas comuns dos clientes da agência para contas com cheque especial. Esse tipo de mudança só pode ser feito com consentimento do cliente e mediante a assinatura de contrato. Isso porque o cliente passa a pagar mais por esse tipo de conta e pode contrair dívidas com o banco caso utilize o cheque especial. Quando não se sabe que se dispõe de um cheque especial, é fácil estourar a conta e ter depois de pagar juros ao banco.

Minha colega deu acesso a cheque especial pelo menos para algumas centenas de clientes. Eu a alertei que não poderia fazer aquilo, pois, além de ser crime, todos os comandos ficariam registrados no nome dela. Ela simplesmente disse que eram ordens do gerente geral.

Um mês depois, os problemas começaram a surgir no atendimento. Eram clientes indignados por ter de pagar nove reais mensais pelo benefício e terem um cheque especial que não pediram nem desejavam. Parecia até uma coisa boba essa indignação, mas não é nem era.
 
Cheguei então ao meu gerente geral e lhe disse que suas ordens de um mês antes estavam dando um resultado muito ruim no atendimento. Ele então me confrontou com a ética da matemática: "Quantas reclamações vocês atenderam hoje?"

"Seis." - respondi.

"Então, multiplique 9 reais por 3000 (clientes que receberiam o 'benefício') e extraia 6 clientes: esse é o lucro mensal - todo mês - da agência só com essa operação." 

Sinto que ele se deliciou com essa astúcia da matemática básica.

No mesmo banco, vi pessoas exploradas de todos os jeitos, principalmente idosos. Como se posicionar contra esse sistema? 

Depois de um ano e meio como bancário, voltei à sala de aula.

Dessa vez, o período foi de calmaria.

Contudo, poucos anos depois, mudei de cidade e tive algumas experiências inéditas para mim, trabalhar em colégios confessionais. 

Em um deles, estava acertando a quantidade de aulas que daria durante a semana, quando o coordenador que me contratava fez o seguinte comentário:

"Você não é cristão, é?"

Respondi que não e comentei que não sabia em que aquilo seria relevante, uma vez que não lecionaria religião e sim Literatura.

Então ele me alertou de que deveria tomar cuidado com certos assuntos durante as aulas. Em todo caso, deveria consultá-lo sobre um tema ou outro que fosse tratar.

Assim que pude, pedi demissão, pois, pior do que a censura política, são os atos da inquisição, que fazem um balaio de gato com vários assuntos de natureza distinta - como pude perceber ao longo de um ano naquela instituição.

Em outra escola, enquanto a coordenadora me mostrava o colégio, ela me perguntou qual era a minha religião. Respondi simplificadamente: "Espírita" (embora para mim religião seja algo mais profundo, que não convém explicar aqui). Estava crédulo de que é melhor falar a verdade do que dissimulá-la ou omiti-la.

Ela parou, sem reação. A desaprovação foi evidente. E tudo ficou muito claro e cada vez mais obscuro, pois não consigo ver relação entre aulas de redação e literatura com minha religiosidade ou concepção de mundo.

Felizmente, nossa conversa não foi além daí, não peguei aulas nessa escola.

Em outra, a situação foi mais intrigante. Não se tratava de uma escola confessional, mas a coordenadora conseguiu transcender as expectativas: perguntou se eu era casado, o que minha mulher fazia, se tínhamos filhos.
Respondi que minha mulher queria ter filhos, eu não.
 
"Se ela quer, dê filhos a ela" - respondeu-me a boa mulher. E naquele momento tudo me pareceu claro a respeito das expectativas depositadas nos funcionários do colégio, nos alunos e na própria sociedade. Percebi que aquele não era meu lugar e dei graças aos deuses por não ser obrigado, como no início de minha carreira, a aceitar aquele emprego.

Outro caso interessante foi quando, também no processo de contratação, me perguntaram se eu tinha residência e carro próprios. Quando respondi afirmativamente, ouvi que então eu deveria me dar por satisfeito, uma vez que estava acima da média do brasileiro. (Gostaria muito de saber se isso me faz um melhor professor...)

Bom, caros leitores, para não terminarmos assim, num beco sem saída no qual o abuso - mesmo que inconsciente - parece ser regra, gostaria de pontuar duas entrevistas felizes de emprego. Uma de um amigo, outra minha.

Meu amigo tem inúmeras tatuagens e ensina filosofia. Já acostumado ao preconceito, foi a uma entrevista de emprego com uma blusa comprida. Depois que parecia tudo acertado, mostrou ao diretor uma de suas tatuagens que apareceria se usasse camiseta e perguntou se haveria problema para a escola. O bom homem, conhecedor do mundo, respondeu com uma pergunta: "Você é sensato e sabe ensinar bem sua matéria?"

Sim, há sempre uma luz! De fato, parece que não é necessário mais do que isso.

No meu caso, uma entrevista dificílima e memorável - das mais honestas que tive - foi com uma diretora que me perguntou quais eram os últimos livros que havia lido, o que achava de tal personagem de tal obra clássica da literatura brasileira, qual era o meu autor brasileiro preferido, o que achava do uso de obras adaptadas em sala de aula, qual era o conteúdo que eu preferia ensinar e por quê. Estava ela junto com mais três coordenadoras de Língua Portuguesa diante de mim que também intercalaram perguntas de estilo semelhante. 

Caros leitores, nunca me senti tão desafiado a dar o meu melhor por uma instituição e por minha equipe, mesmo antes de trabalhar naquela escola. Ali ficara bem claro o que realmente importa em uma sala de aula; aquele foi meu batismo de fogo como profissional. Foi uma experiência que moldou minha percepção sobre o que e como deve ser uma entrevista de emprego; qualquer pergunta que fuja objetivamente do que é essencial à sala de aula me parece fora de propósito. Se eu sou casado com alguém do mesmo sexo, se não creio em Deus, se acredito no liberalismo, penso que nada disso deve ser tabu, ou deve?

Se você tem alguma história de abuso em entrevista de emprego ou no emprego em si para contar, convido a deixá-la registrada nos comentários.

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