segunda-feira, 25 de setembro de 2017

A cruz cristã em um centro de umbanda?


    Quando nascemos - dizem os sábios - recebemos sobre as costas a primeira de nossas cruzes, composta por dois eixos: o vertical - do tempo -, e o horizontal - do espaço. Será ela mais ou menos leve conforme nosso sexo, condições físicas, posição social e circunstâncias familiares e sociais.
    Assim, nascer pobre no Brasil em 2017, em um grande centro urbano como São Paulo, pode ser bem mais promissor do que nascer na realeza de Portugal, em Lisboa de 1755. Isso porque hoje contamos com uma medicina muito mais avançada, saneamento básico, acesso à informação e uma série de comodidades que em 1755 um nobre jamais sonharia. Outra questão importante é que naquele ano o terremoto de Lisboa matou milhares de pessoas, deixando outras tantas em situação de orfandade, carência e penúria extrema, independente de classe social. 
    Só para citar um exemplo mais palpável, a cruz do tempo - espaço é mais leve para casais homoafetivos que estão atualmente na Holanda em comparação aos que vivem hoje no Brasil, sendo que ambos estão praticamente no paraíso se comparados a homossexuais que vivem na Arábia Saudita. Não é preciso muito para perceber que, ao modificarmos o eixo espaço - sem movermos minimamente o eixo tempo -, o peso da cruz aumentou substancialmente, talvez ao nível do quase insuportável.
    A cruz tempo - espaço também se junta e interfere em outras cruzes. Uma delas é a cruz cujo eixo vertical é o desejo e o horizontal é a ação. É possível possuir um desejo e não poder concretizá-lo por causa do tempo ou do espaço. Em alguns casos, esses elementos são negociáveis, o que não se pode realizar agora, realiza-se mais adiante. Já em outras situações, o tempo ou o espaço literalmente jogam contra. Muitos gênios devem ter sofrido com isso, e, guardadas as proporções, todos nós sofremos com os complicados elementos dessa engrenagem.
    Outra cruz que se relaciona intrinsecamente com as duas anteriores é aquela que tem como eixo vertical o conhecimento e como eixo horizontal nosso raio de aplicação desse conhecimento. É comum que o pouco conhecer resulte em agir com pouca eficiência, ou o pouco autoconhecimento resulte na ação autodestrutiva. De acordo com essa metáfora, quanto menor o eixo vertical da cruz tanto mais pesada ela costuma ser.
    Contudo, creio que se o leitor chegou até este ponto da leitura, sua boa vontade em prosseguir nos meandros deste texto deve-se ao fato de que a cruz do título, uma clara alusão ao símbolo máximo do cristianismo, chamou-lhe maior atenção do que as cruzes que propus até agora.
    Então vamos a ela.
    A cruz infamante, na qual Jesus, o Cristo, foi crucificado, era do mesmo tipo em que foram ao mesmo tempo torturados e mortos dois ladrões. É da tradição que ambos os bandidos não recebam piedade nem comovam uma décima parte do que comove a imolação de Jesus. Isso por motivos óbvios, o último era, além de inocente, o próprio Filho de Deus - se podemos nos expressar assim. Observem que ele foi crucificado pelas cruzes tempo - espaço, desejo - ação, conhecimento - aplicação do conhecimento e algumas outras cruzes que com um pequeno esforço poderíamos inferir. É oportuno lembrar que a crucificação de Jesus também não teve grande repercussão a não ser entre poucas pessoas de seu tempo.
    Apesar disso, sua cruz ressignificou um instrumento de tortura e morte, transformando-o em um estandarte de fé a indicar concomitantemente as agruras da vida material e a vitória da vida espiritual para além dos véus da morte. Tornou-se símbolo do messias esperado na tradição judaica, embora muitos judeus, por diferentes razões, não o tenham aceito como tal, nem tenham a obrigação de fazê-lo.
    Nesse sentido, penso que seja importante que os cristãos, não importando sua denominação, compreendam que Jesus Cristo, apesar de sua relevância óbvia no cristianismo e na repercussão dessa fé no mundo, é entendido por alguns como um mito, por outros como uma figura histórica e por outros é completamente ignorado, sem que essas pessoas sofram nenhum tipo de abalo de consciência ou sintam desejo de serem tocadas em seu senso de transcendência por aquilo que Jesus possa representar. Assim, os únicos que têm realmente algum tipo de compromisso com Jesus Cristo são aqueles que por algum motivo acreditam nele, pois todos os demais estão completamente desobrigados a crer nele, a seguir seus ensinamentos e a praticar os ritos inspirados em sua mensagem.
    Se alguém que se define como cristão não consegue compreender isso é porque está preso à cruz tempo - espaço medieval ou à cruz contemporânea da ignorância - intolerância.
    E por que estou escrevendo sobre isso?
    Explico.
    Este texto nasceu em uma encruzilhada, ainda que metafórica. Foi em uma semana em que notícias sobre intolerância religiosa ganharam a mídia. Mais uma vez, religiões de matriz africana foram atacadas na figura de seus ícones e representantes.
    Talvez esse fato tenha se encruzilhado com um evento ao acaso, pois no mesmo período em que as tristes notícias se propagavam pelas redes sociais, eu ia pela quinta ou sexta vez a um terreiro de umbanda relativamente grande de minha cidade. 
    Preciso esclarecer, para ser justo com meu leitor, que não sou umbandista, pois não compreendo bem essa religião nem suas práticas, embora acredite em mediunidade, na boa vontade de pessoas que entregam seu tempo e empenho de modo desinteressado à própria fé, além de não colocar em dúvida a veracidade dos fenômenos que posso testemunhar sempre que vou a esse centro de nome muito despretensioso.
    Em nenhuma das vezes que ali fui, vi qualquer manifestação de intolerância ou crítica à qualquer outra religião. Pelo contrário, os trabalhos abrem com uma saudação de respeito a todas elas. Ignoro qual seja o conceito que lá fazem de Jesus, se ele se trata do Filho na trindade, se ele é um espírito evoluído ou representação de um orixá - somente sei que ali o respeitam e, inclusive, há uma imagem dele entre a de outros santos. Recebe ele ali outro nome? De fato não sei.
    Os trabalhos também iniciam com um Pai Nosso, prece praticamente judaica ensinada por Jesus a seus discípulos e imortalizada nos evangelhos. 
    Apesar, no entanto, da prece cristã e da imagem de Jesus fazerem parte do contexto que testemunhei, certamente, do ponto de vista tradicional, a umbanda não é cristã, pois não se trata de mais uma entre as inúmeras ramificações de igrejas com diferentes interpretações das escrituras. Creio também que os umbandistas nem se preocupem em se definir como cristãos, no sentido strictu da palavra e talvez nem no sentido lato. E aí você deve estar se perguntando: "como fomos chegar a esse ponto de ideias tendo iniciado a falar de cruzes?".
     Bom, o fato é que em minha última visita ao lugar mencionado, percebi que no símbolo dessa casa de umbanda em específico há uma cruz. Confesso que nunca havia reparado nisso e também que fiquei surpreso ao vê-la. Imediatamente, me ocorreu que se tratava de um símbolo de caminhos que se cruzam ou de caminhos que chegam todos a um mesmo ponto, ou ainda de mensagens que saem todas de um mesmo ponto. E dessas reflexões últimas cheguei às primeiras que expus logo no início do texto, as quais, em verdade, nem são originalmente minhas. De qualquer modo, a cruz, como todos sabem - ou deveriam -, é um símbolo muito anterior ao cristianismo.
    No entanto, não descartei também que o símbolo do centro pudesse ter uma referência cristã, embora a casa de umbanda em questão não desenvolva em discurso retórico doutrina de nenhum tipo nem faça proselitismo. 
    O que posso dizer com certeza é que o trabalho a que fui dessa vez e das outras trata-se de uma atividade de atendimento, de aconselhamento, de consolação e orientação em que nada é pedido em troca, nem mesmo a crença na umbanda ou em seus ícones. Basicamente, é um momento aberto para que pessoas tragam suas inúmeras cruzes de modo a encontrarem ali uma forma de se aliviar o peso da experiência da cruz humana e de prosseguirem mais leves no próprio caminho, sem nenhum tipo de julgamento ou livres de qualquer imposição que gere conflitos de consciência. Ali também se deixam cruzes que outros colocam sobre nós e que não são obrigatoriamente de nossa responsabilidade carregar. 
    Contudo, ironicamente, o próprio lugar, seus adeptos e frequentadores têm sobre si ainda uma cruz tempo - espaço da qual não conseguem se livrar, uma vez que esta última diz respeito a um país no qual os maiores perseguidores das religiões de matriz africana são forjados dentro de cultos que escolheram a cruz como símbolo máximo de sua ideologia e dentro das quais é possível ouvir - até sem nenhuma dissimulação - o uso leviano de referenciais importantes e cultuados na umbanda e no candomblé, além da repreensão explícita aos praticantes dessas religiões, juntamente com apologia ao temor e ódio a tudo que a elas se refira.
    Preciso mais uma vez admitir que não sei o que a cruz representa no símbolo daquele verdadeiro templo de religiosidade, mas tenho profunda certeza de que a umbanda e algumas outras religiões têm carregado cruzes muito cruéis impostas pelo próprio cristianismo - no sentido histórico e social - que já poderiam ter sido superadas há um bom tempo, principalmente no Brasil. Por esse motivo, a cruz cristã - e o bom entendedor compreende perfeitamente o que eu digo - certamente tem pesado muito sobre indivíduos que têm todo o direito de pensarem, acreditarem e cultuarem de modo diferente do que muitos outros consideram adequado, correto e ortodoxamente verdadeiro.

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