domingo, 4 de dezembro de 2016

O Exorcismo de Satanás

O Exorcismo de Satanás

Há dias em que até as Trevas perdem a paciência com o modo como se pratica o Mal. Nesses momentos, o próprio Satanás sai de seu reino para visitar os mortais, deixando-os estupefatos com sua presença e personalidade. Um detalhe: ele só visita religiosos, ou seja, aqueles que nele creem. Para os demais, existem outros métodos mais simples, porém não menos eficientes.

Antes que você pense que estou de chacota, sugiro que continue a leitura e, ao final, reflita se eu não tenho razão. Se discordar, fique livre para contra-argumentar, desprezar esse conto ou, como é verdadeira moda - tão ao gosto do próprio Satanás -, fique à vontade para me odiar. Somente sugiro que antes leia o texto por completo e não tenha pressa para tirar conclusões.

***

- Boa noite, bonitão... - o Satanás em satanás (para não dizer em pessoa), saudou o pastor Veríssimo que, voltando do culto,  acabara de entrar em casa e acender a luz.

Todo o ambiente cheirava enxofre. Uma sinfonia de moscas dava a impressão de que o santo homem entrara no espaço de um monturo carnicento.

Pastor Veríssimo, tomado de completa perplexidade, levou a mão esquerda ao peito, deu alguns passos para trás e, lembrando-se de sua suposta envergadura moral e do Livro Sagrado na mão direita, muniu-se de coragem e avançou em direção à maligna criatura que estava confortavelmente acomodada em seu sofá. Pensou: "Terei de terminar aqui o que achei ter acabado na igreja." 

- Saaaaaaaaaaaaia, Exu, em O Nome do Senhor! - e foi colocando a Bíblia nas fuças do capeta.

Com a ofensiva já esperada, Satanás deixou de pirotecnia. Fez que sumissem as moscas e o forte odor do recinto e, simplesmente, transfigurou-se. Agora parecia um homem sério, de vestes sérias e elegância irreprimível. Tudo isso num átimo de segundo.

Com certa tranquilidade de quem já conhece o ser humano há milênios, o "homem de negócios" repreendeu Veríssimo:

- Acho que o senhor está confundindo as bolas. Até onde sei, Exu é algo fora de nossas teologias. O senhor estudou essa matéria, não é mesmo? Exu não é palavra que se aplique à minha natureza. Aliás, se o senhor mudar de religião e teologia, eu sumo neste instante. As religiões que cultuam os Exus nem me conhecem, tampouco se preocupam comigo. Inclusive, na verdade, essa é uma das questões que me trazem aqui. 

- Então, demônio, me propões que abandone o Senhor... Aaaaaah, Pai da Mentira!! Estás me tentando? - a verve apostólica se apossava de Veríssimo.

- Sente-se, homem - convidou Satanás, sem intimidar-se, demonstrando certo fastio até.

- Abandonei meus artifícios retóricos e peço que, em solidariedade, o senhor faça o mesmo. Vou logo explicando para que você não se iluda. Palavras santas escritas em papel não santificam o papel; o mesmo acontece ao homem, palavras santas na boca de um homem não o santificam. Veríssimo, ponha uma coisa em sua cabeça: nós dois somos praticamente da mesma natureza.

A satânica observação roubou as palavras do pio pastor, o que foi muito útil para que a conversa não se alongasse desnecessariamente. Foi quando Satanás o pegou pela mão, fazendo-o sentar-se ao seu lado.

A partir de aí, a trevosa criatura adotou tom mais didático:

- Primeira questão que quero bem clara em sua mente, Veríssimo. Estou aqui porque você tem me dedicado toda uma igreja, pensando inclusive em abrir filiais. Então, se a igreja é minha, gostaria eu mesmo de estabelecer as regras e o estilo de culto.

Ainda que seu interlocutor permanecesse calado e estarrecido, o bom Satã adivinhava-lhe os pensamentos.

- Ora, Veríssimo, não me venha com essa que sua igreja é de Deus. Não há nome mais citado lá do que o meu. Não há mais feitos lá relatados do que os meus. Não há mais descrições sobre imagens do que as minhas... Ora, Veríssimo, a sua igreja, a bem da verdade, foi aberta em meu nome.

- E é aí que a coisa tem se complicado. Você tem confundido os nomes, Veríssimo. Está faltando elegância. Me desculpe dizer, mas está faltando coerência teológica. Sejamos francos, Veríssimo, está faltando estudo. Lúcifer é uma coisa, diabo é outra, demônio é outra, Belzebu outra ainda distinta e Satanás é outra. Você não teve aulas de etimologia e interpretação de textos bíblicos?

- Rapaz, além disso, vê se esquece dessa coisa de Exu. Já disse, isso é outra teologia, uma crença dentro da qual eu nem existo. Precisamos ser coerentes, Veríssimo. Eu sou uma ideia elegante, não posso ir sendo confundido com outros nomes. Repare, eu só sou tirado das pessoas porque eu habito nelas. E às vezes, para ser sincero, até me confundo se, na verdade, não são elas que estão em mim - como tem sido particularmente o nosso caso.

- Sabe, Veríssimo, até no Mal nós precisamos ter ética. O Mal é racional, estratégico, elegante, sedutor. O Mal é perfeito em sua natureza, e eu, como seu infernal representante, não posso deixar que você faça uma caricatura tão tosca de mim. Se for para continuarmos essa empreitada juntos, exijo respeito, disciplina, dedicação e, sobretudo, estudo.

- Pense nisso! Pense com carinho. Amanhã quero uma resposta. Se for para fecharmos verdadeiramente esse trato, chegue à igreja meia hora antes. Eu vou me colocar ao seu lado sem que ninguém me veja e vou soprar ao seu ouvido tudo o que você terá de falar e fazer. Esse será seu treinamento durante seis meses. Depois eu visitarei sua igreja uma vez por mês para que nós não percamos contato. O que acha?

Antes de uma possível resposta, Satanás alertou:

- Você não é obrigado a fazer esse pacto comigo. Mas já aviso de antemão que não vou admitir o que tem feito. Se você continuar com isso, todas as noites depois do culto nos encontraremos aqui em sua sala.

O pastor Veríssimo?

Mudo. O homem ficou completamente mudo. Nenhum A se ouviu daquela boca santa.

Assim foi que, envolto em uma nuvem de fumaça, Satanás retirou-se. Diga-se de passagem: a criatura sempre adorou uns efeitos.

No dia seguinte, na hora do culto, a igreja não abriu. Os fiéis ficaram preocupados. O que teria ocorrido ao pastor Veríssimo?

O fato é que ninguém mais o encontrou. O imóvel da igreja voltou a ser posto para alugar, e o que foi ouvido entre alguns frequentadores da antiga congregação é que Veríssimo deixara de ser pastor e fora trabalhar com a venda de planos odontológicos. 

Certo dia, ouviu-se uma irmã comentar:

- É, tem que se ficar atento com o Satanás, ele tem seus ardis para tirar homens santos da igreja.

O que ela jamais imaginaria é que o próprio Satã - em satanás - concordaria totalmente com ela. 

Quando se encontra o Próprio frente a frente, ninguém mais volta a ser o mesmo.


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