quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Falava ele de crushs?



Não é a primeira vez que me perguntam, e como essa dúvida parece recorrente, vou respondê-la aqui por escrito, talvez com um pouco mais de colorido do que de costume.

 A tal da dúvida a que me refiro frequentemente se apresenta assim: "Professor, você consegue perceber a diferença entre a sua geração e a minha?"

Bom, antes de tocar mais propriamente o tema, preciso esclarecer que a minha pré-adolescência e adolescência foram vividas no final dos anos de 1980 até meados da década posterior, portanto antes da internet.

Comecei a lecionar em 1999 e sinto que já dei aula para três gerações de alunos, embora os parâmetros que determinem uma geração sejam relativizáveis do ponto de vista pessoal.

A primeira geração com a qual tive contato como professor foi praticamente a mesma que a minha. Para ela era muito mais fácil dar aula, porque eu a compreendia muito bem.

A segunda, mais próxima da primeira, não possuía ainda smartphones e acesso irrestrito à internet, entretanto já sabia usar bem o google de modo a perceber que talvez ali houvesse algo de mais interessante a ser encontrado para além das relações convencionais entre família, amigos e escola.

 A atual, por outro lado, tem perfil em redes sociais praticamente desde os dez anos e costuma acreditar que todas as soluções possíveis para as demandas da vida estão à disposição em blogs, vídeos e aplicativos.

Antecipo que isso não é uma crítica, é apenas uma constatação. Se eu mesmo tivesse nascido nos anos 2000, provavelmente não seria de todo diferente.

Mas vamos ao ponto. O que gosto de utilizar como referencial para demonstrar a questão de algumas diferenças geracionais é algo sensível a qualquer pessoa e diz respeito aos encantamentos do amor. Sim, bons leitores, vou falar sobre flertes, paqueras ou, de modo mais atual, crushs, como quer a nova geração - ainda que o termo já estivesse consagrado na década de 90 nos EUA.

A primeira grande questão é saber como a coisa se desenrolava no mundo pré-rede social. Devo dizer que para as pessoas tímidas a situação era infinitamente pior, principalmente para os meninos - os únicos a quem cabia tomar a iniciativa de aproximação.

Naturalmente, quando nos interessamos por uma pessoa, desejamos saber sobre ela, seus gostos, suas relações, enfim, queremos saber sobre uma parte de sua vida que ela não sai contando por aí - ou não saía postando por aí. Então, para se obter alguma informação a respeito do crush, éramos obrigados a nos expor, a ouvir atentamente o que se falava sobre o crush, a aproximar-se de alguém mais chegado a ele e fazer perguntas. Era um processo relativamente lento se comparado a hoje, porque a exposição a que estávamos sujeitos era muito maior. Para que nós decidíssemos perguntar sobre o crush para uma amiga dela, precisávamos ter convicção de que de fato estar com a outra pessoa era importante, pois a comunidade - geralmente escolar, assim como parte da família - ia ou poderia ficar sabendo de nossas intenções antes mesmo de termos uma resposta afirmativa do crush. Um "fora" era sempre algo - além de frustrante - muito embaraçoso. Além disso, havia a questão da reputação ou do chamado "filme queimado". Uma pessoa que estivesse afim de outra poderia ter receio de assumir uma relação, por mais breve que fosse, caso houvesse algum problema em jogo, no caso, a reputação. Lembrem-se de que, sem internet, as relações presenciais eram muito mais intensas e limitadas.

Assim, ter um contato direto com o crush era algo muito mais desafiador do que mandar um in-box puxando conversa. Ter contato com o crush, definitivamente, exigia estratégia.

A principal e mais reveladora era conseguir o número de telefone. Pedir o número de telefone - e estou falando de telefone fixo - era anunciar dois fatos: que havia interesse em se relacionar com a pessoa e que em breve uma ligação seria feita. Pedia-se o telefone ou para o crush - no auge de um ímpeto heroico e arrebatador -, ou para uma amiga dela. Ambos, no final, davam na mesma: não somente o crush como outras pessoas saberiam de suas intenções.

Depois era necessário coragem para ligar. Quem atenderia? O pai? A mãe? O irmão? Você seria a conversa do jantar?

Santa privacidade, onde estava ela afinal?

O contato telefônico era somente um meio, não um fim, ou seja, a ideia era marcar para ir ao shopping, ao cinema, ao parque, o que fosse, para somente então consumar o que já estava escancaradamente anunciado. Éramos, portanto, obrigados a nos fazermos verdadeiramente presentes. Isso exigia um desgaste psicológico terrível, porém ao mesmo tempo poderosamente prazeroso, cheio de expectativa e adrenalina.

É claro que todo esse processo apresentava suas variáveis. Foi nessa época que se popularizou o tal do "ficar", isto é, beijar sem compromisso. Mas, de qualquer modo, fazer-se presente, expor-se, era essencial.

Outra estratégia era tentar minimizar os danos. Um bom modo era fazer que um amigo ou amiga auscultasse a situação e descobrisse se a resposta do crush seria afirmativa. Assim, era como ir à guerra com a primeira batalha já vencida. Quando uma menina usava dessa estratégia, o rapaz é quem, no fim das contas, deveria tomar a iniciativa, sabendo, no entanto, de antemão qual seria a resposta.

Hoje, com as redes sociais, a coisa parece ter ganhado outra dinâmica. É aí que entra a força de um nova ação possível que tirou a necessidade dos intermediários e da exposição kamikaze a que estaríamos sujeitos anos atrás. A palavra que descreve essa ação é estalquear. Estalquear trata-se de um termo mais elegante para espionar, porém empregado mais adequadamente para o universo digital.
O estalquear é arrebatador. A minha geração, assim como as anteriores a ela, tem inclusive migrado para esse tipo de relação. Nela, o crush é mais conhecido e investigado sem que talvez ele nunca tenha conhecimento sobre isso. O crush pode então ser abordado por um in-box, sem que ele mesmo tenha fornecido seu contato ou autorizado alguém a fazê-lo. O crush pode ser iludido mais facilmente, porque o que se faz na net costuma ficar na net. O crush é consumível pelas fotos que posta. (Gostaria de lembrar que, não muito antigamente, mostrar as próprias fotos a alguém era um convite para que a outra pessoa participasse de sua intimidade).

O crush pode ser consumido ao mesmo tempo entre outros crushs, sem o menor risco de que ele mesmo saiba, portanto sem que a reputação do "apaixonado" seja colocada em xeque.

O crush é bem mais descartável no grande mercado de crushs, e isso se transforma em uma tentação para que não assumamos compromissos, tampouco sintamos aquela adrenalina da incerteza e do arroubo que nos levava fatalmente à exposição social, pronta a nos tornar o tema passageiro das rodas de conversa entre amigos e familiares.

Parece, portanto, que a relação com os crushs se modificou sensivelmente desde então, e esse é um sintoma de que nossa percepção do mundo também mudou, marcando a diferença entre gerações, valores e comportamentos.

Assim, vale a pena lembrarmo-nos dos versos de Camões nos idos do séc. XVI: "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades".

Falava ele de crushs?







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