quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Um mandamento em favor de órfãos com pais vivos


Um mandamento em favor de órfãos com pais vivos


Sonhar com um poder que não temos é praxe na humanidade. Recentemente eu mesmo passei a enamorar-me por certa ideia: "se eu pudesse acrescentar um mandamento aos livros sagrados, que lei pétrea seria?". Pensei em algo refinado. Não num mandamento com promessa como aquele destinado aos filhos e tão caro aos pais (Honra teu pai e tua mãe, a fim de que venhas a ter vida longa na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá), mas sim um mandamento com um alerta em negrito, escrito com letras maiúsculas e reiterado inúmeras vezes ao longo dos textos bíblicos. Modéstia à parte, creio que essa iniciativa ajudaria a render ótimos frutos, senão na prática, ao menos para provocar profundas reflexões em muita gente.


Ei-lo em seu esboço: 

"Honra teu filho e tua filha, a fim de que não pereçam na infância nem na adolescência, não se percam na fase adulta nem tampouco te desamparem na velhice."

Antes que me acusem de leviano por macular a obra em questão com minha frase mundana, em minha defesa chamo os filhos e filhas desonrados por pais e mães, com desonras de todas as sortes.

Em meu cotidiano, o tipo que me chama mais a atenção é o do abandono afetivo, psíquico e moral, o abandono que gera os chamados órfãos de pais vivos. Muitos desses pais, embora fisicamente presentes, por um motivo ou outro - que não me cabe julgar -, negligenciam a atenção, o carinho e a orientação que deveriam dar a seus filhos. Assim, crianças vão crescendo à mercê de todos os tipos de influência possíveis, com mais chances de fazerem más escolhas do que boas, ou seja, com mais vocação para experiências infelizes do que o contrário. Alguns, inclusive, inconscientemente, tendem a repetir padrões vividos na infância, fazendo novas vítimas quando se tornam mães ou pais.

Anos atrás, conheci duas irmãs, uma de quinze e outra de dezesseis anos. Ambas estudavam em escola particular e não tinham que se preocupar com aquelas questões básicas da vida: o que comer, o que vestir, onde morar, enfim, situações que afligem muitos adolescentes brasileiros na idade delas.

Alguém, portanto, facilmente diria: "Do que podem reclamar então?"

Creio que também elas, por fazerem semelhante reflexão, diriam que nunca tiveram direito para reclamar de nada. E aí está o ponto dessa história que acredito mais cruel: é quando nós não somos capazes de perceber que sofremos injustiças e, inadvertidamente, passamos a repetir conceitos que só interessam ao alívio da consciência de outros que não nós. Guardadas as proporções, seria o equivalente ao exemplo do escravo que defende seu senhor ao dizer que, afinal de contas, ainda que cativo, a servidão lhe apraz porque "desfruta" de um lugar para dormir e de refeições que lhe sustentam o corpo, enquanto outros nem isso têm.

A desculpa, nesses casos, atribui o mau destino à força irresistível da índole indômita. "A vida de ninguém é mil maravilhas, se fulano foi para tal caminho, é porque ele fez as próprias escolhas. Tanta gente com muito menos não se corrompeu."

Em parte concordo com essa afirmação, mas há casos em que ela pode muito bem ser problematizada.

Voltemos às irmãs.

A mais nova, quando tinha quatorze anos, foi a uma festinha de adolescentes no condomínio onde morava. Lá conheceu o jovem Fernando, outro órfão de pais vivos. Fernando, com dezessete, quis ter uma relação sexual com ela. Ela pensou - se pensou - "Por que não? É bom, estou com vontade, o Fernando é bonito, é um cara legal. Quem se importa?"

Por algum motivo que não sei nem vem ao caso, ela não engravidou. Ela e Fernando podiam ficar pelo condomínio até às duas da manhã. Os pais não se importavam. Fernando podia pegar o carro do pai, que também não se importava com o fato de que esse tipo de liberdade, além de inapropriada, era contra a lei.

A jovem e o rapaz desenvolveram o sentimento de que eram donos da própria vida e poderiam fazer o que bem entendessem. Não faltava dinheiro para isso, nem tempo nem vontade.
A moça passou a faltar à escola. Abandonou o colégio. "Fase difícil, coisas de adolescente" - ponderaram os pais.

Baladinhas, bebidas...

A irmã mais velha me contava uma ou outra aventura da mais nova. Lamentava a situação. Dizia que os pais toleravam os comportamentos da irmã. A mais velha parecia mais madura também. Porém, todos os exemplos mais próximos que ela tinha demonstravam na prática que ser do modo como ela era não fazia sentido. As mensagens explícitas e implícitas que lhe chegavam cotidianamente conduziam a um receituário bem simples: um problema emocional se resolve com uma boa noitada; uma frustração qualquer se resolve com a fuga das responsabilidades; o ideal mesmo seria encontrar outra pessoa com quem se pudesse falar um pouco dos problemas e se pudesse compartilhar afeto - produto tão em falta no mercado.

Foi então que a irmã mais velha - a mais madura - se encantou com um novo rapaz. Ele, com seus 21, provavelmente também órfão, não tinha limites - e era incrivelmente sedutor justamente por inspirar essa confiança e segurança de que ele estava ao lado dela contra tudo e todos, para o que desse e viesse, no velho estilo Bonnie e Clyde.

Bastou pouco para que ela começasse a dormir na cama de casal dele, no quarto dele, dentro da casa dele, que era na verdade dos pais que ali também viviam.

O dia de ir à escola veio, ela não foi. O outro dia a chamou quase numa súplica rouca, ela não ouviu. Assim passaram-se algumas semanas.

O coordenador ligou para a casa dela. Ela não tinha ninguém que a chamasse à razão e a fizesse ir, a não ser a desvanecida memória da menina que ela tinha sido até dois meses antes. Apesar disso, contra todas as expectativas, a voz da outra - que também era ela - se fez ouvir.

Por esse motivo, no dia seguinte à ligação do coordenador, a encontrei na sala de aula. Sua presença ali soava como uma quase despedida, como se ela tivesse aparecido somente para avaliar a troca que estava prestes a fazer. Sua decisão teria uma repercussão decisiva para seu futuro e implicaria  mudar-se para a Terra do Nunca com o namorado ou permanecer na Terra Sem Sentido, que era a escola e sua vida sem perspectivas. 

De minha parte, tenho de confessar que, no lugar dela, já teria sido arrastado para a Terra do Nunca. Ah, como é bom estar num  lugar cheio de sensações e vertigens...

De qualquer modo, ela tinha uma novidade para contar. Falou-me sobre o namorado. Estava feliz, apaixonada. Eu, por outro lado, fui sendo invadido por uma emoção estranha: a sensação profética de que a estávamos perdendo. Ela estava partindo. E era uma partida difícil, porque ela escolhera seguir por um labirinto para o qual não haveria um mapa seguro. 

Senti então que era urgente entregar-lhe uma mensagem. Se eu pudesse tatuá-la em um lugar de seu corpo em que ela pudesse olhar todos os dias, assim o faria resoluto. No entanto, o que dizer, que conselhos dar?

Veio-me a inspiração: 

"Lembre-se de que, não importa com quem você estiver e o quão importante for essa pessoa para você, você é a única dona de suas vontades e a única dona de seu corpo. Essas são as duas coisas mais preciosas de sua vida".

Ela parou um instante, refletiu e me fez um pedido:

"Nossa, professor, como é? Que bonito isso. Você pode repetir, por favor?"

"Claro que sim" - consenti.

Repeti a frase, e ela acompanhou minhas palavras movendo os lábios, como se desejasse decorar o que ouvia.

Parou, inspirou fundo introspectiva e, por uma última vez, renovou o pedido um pouco constrangida.

"Professor, o senhor se importaria de repetir isso mais uma vez?"

Pela terceira vez eu enunciei essa frase tão profundamente verdadeira e às vezes tão esquecida.

"Lembre-se de que, não importa com quem você estiver e o quão importante for essa pessoa para você, você é a única dona de suas vontades e a única dona de seu corpo. Essas são as duas coisas mais preciosas de sua vida".

Senti que, assim, gravara a inscrição sobre o portal pelo qual ela passaria em breve e pelo qual talvez nunca mais voltasse.

Ela sorriu meio sem jeito, me deu um abraço. O sinal tocou. Todos foram embora como ocorre em todos os dias letivos.

Quanto a ela... bom, ela foi embora de um jeito diferente, como vão tantos outros jovens para fora da adolescência.

E é somente por esse motivo, meu caro leitor, que, às vezes, nos meus sonhos de megalomania, se eu pudesse, escreveria esse mandamento salvador em todos os livros considerados sagrados e o picharia sem remorso em todos os muros mundanos da cidade: 

"Pai, Mãe! Honra teu filho e tua filha, a fim de que não pereçam na infância nem na adolescência, não se percam na fase adulta nem tampouco te desamparem na velhice."





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