terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Fábrica-Escola e o Mestre de Máquinas






Desde a Revolução Industrial, instaurou-se nos meios de produção a era da eficiência, uma mentalidade pragmática marcada pela ideia de que cada ser, inanimado ou não, deve possuir uma finalidade, um determinado desempenho e uma durabilidade a serem explorados ao máximo. Assim, operários tornaram-se peças de engrenagem, ou seja, pessoas foram reduzidas à sua capacidade de produção.

Mas quem nos interessa, caríssimos leitores, é uma outra peça, a que chamaremos "mestre de máquinas" e analisaremos em versão mais contemporânea.

O mestre de máquinas tem função estratégica no sistema. Isso porque ele detém perfeita noção acerca dos intentos do dono da fábrica e ao mesmo tempo compreende a complexidade do funcionamento do maquinário, de modo a fazê-lo desempenhar como esperado. No entanto, para isso, ele precisa ter o controle sobre tudo o que ocorre na fábrica, sobre cada operário, sobre cada máquina, sobre cada produto que sai na última esteira para ser empacotado, sobre cada engrenagem da engrenagem... Trabalho duro, trabalho árduo, trabalho essencial em uma fábrica.

Uma vez que traçamos um fraco esboço de quem seria essa peça-chave do sistema, vamos observar um caso peculiar em uma fábrica que trabalha com um produto muito especial e sensível: resultados no vestibular.

Os produtos, portanto, são aprovações e classificações em exames de ingresso em faculdades concorridas. Os operários são de dois tipos: por um lado, os alunos que devem atingir os resultados esperados, por outro, os professores, que devem elevar o desempenho desses alunos ao máximo.

O processo de produção é basicamente todo intelectual. Os testes são todos monitorados ao longo de pelo menos três anos; os resultados de todos os operários são medidos em tabelas para serem avaliados e reavaliados.

Como os leitores podem constatar, referimo-nos a um sistema realmente prodigioso, que permite averiguar os pontos sensíveis do processo para reformulá-los e superá-los.

Apesar do modelo praticamente infalível, há sim desafios. O perfeito desempenho dos operários conta com alguns entraves, como diferenças de aptidões - nem todo aluno responde igualmente ao processo de aprendizagem e provas -, conflito de interesses - nem todo aluno deseja fazer vestibular em instituições de renome -, além da vida particular do aluno, de seu perfil psicológico, de suas aspirações e de tudo aquilo que só diz respeito a ele.

Outra questão relevante são os professores, mas essa é menos desafiadora, já que boa parte desses operários ou concorda com o sistema e o reproduz com prazer, ou consente com o sistema por uma questão de sobrevivência.

Isso posto, vamos ao caso de um mestre de máquinas cuja prática ilustra tantos outros enredos semelhantes.

Esse mestre em questão, a exemplo de seus comuns, possui também sua sala de máquinas. Lá ele vigia todas as salas onde estão os operários.

Tudo o que desfavorece o desempenho intelectual deve ser suprimido; tudo... definitivamente tudo.

A forma aparentemente mais eficaz para isso é produzir a sensação de que todos os operários, um a um, estão sob ininterrupta vigilância. Nesse sentido, a tecnologia é pródiga em contribuições: câmeras coloridas de ótima definição em todas as salas de aula; o controle de todas as câmeras na sala do mestre de máquinas.

Todos na fábrica-escola se sentem sob o olhar do Grande Irmão ou na mira indefensável do Panóptico de Foucault - escolham a metáfora que melhor lhes aprouver - ou ambas.

No que concerne à primeira etapa do controle, ótimo, tudo se vê... mas onisciência envolve saber o que se diz também. 

Embora não haja microfones junto às câmeras, encontrou-se meio mais eficiente de saber o que se fala durante as aulas. Espionagem é seu nome. Operários que servem ao mestre de máquinas, servem-no com prazer. Sentem-se talvez importantes ao fazê-lo, superiores aos demais. Dizem quem fez e quem deixou de fazer, quem falou ou deixou de falar, quem está namorando quem, quem terminou com quem, quem gosta de morango, quem gosta de chocolate, que professor falou palavrão, qual palavrão e em qual circunstância.

Os informantes com altas chances de desempenhar no vestibular têm ainda um bônus: podem sugerir o que deveria mudar em determinadas aulas - didática, conteúdo, performance...

Assim, mesmo que não haja microfones nas salas, muitos operários creem que  tais mecanismos estejam lá, pois certas vezes são chamados à presença do mestre de máquinas e confrontados com aquilo que disseram ou fizeram em uma ocasião ou outra.

O mestre de máquinas pensa ser saudável à fábrica que os operários sejam perturbados com essa crença.

A pessoa da Sala de Máquinas tem suas crenças também. Para ele, esse sistema é o mais adequado, o menos falível. Pela inegável eficiência disciplinar que esses métodos permitem, ele não vê problemas morais no processo de produção dos resultados dessa fábrica. Os fins justificam, sem a menor dúvida, os meios - quaisquer que sejam eles. Todos agem conforme o dever - agir por dever não é o que importa.

O panóptico do mestre de máquinas ainda tem uma extensão para além dos muros da fábrica. Chama-se rede social. Estalqueiam-se todos os operários - investigar ou monitorar seriam palavras muito pesadas. Aquilo que for relevante para a fábrica certamente não passará em branco. 

Desse modo, na Sala de Máquinas desenvolve-se conhecida paranoia pelo controle, pelo resultado, pela onisciência, pela onipresença, pela onipotência.

O mestre de máquinas brinca de Deus em seu sistema perfeito, mas diferente Deste - que criou todos os seres e os conhece -, o mestre de máquinas não conhece verdadeiramente seus operários. Possivelmente ignora que eles se sentem inseguros, sem autonomia e têm medo de falar algo que possa chegar à temida sala do mestre. Ignora que alguns passam a acreditar que são mensuráveis como pessoa a partir de seu desempenho nas provas, resumindo sua autoimagem em operários nota 6,0, nota 4,5, nota 8,0 nota 9,5. Desconhece que nesse sistema existem operários que acreditam que por serem pouco relevantes em suas notas nem são dignos de serem conhecidos pelos demais operários. Ignora que os operários não estão se tornando seres morais, mas condicionados à moral de um sistema.

O que o mestre de máquinas precisa saber e nenhuma câmera, informante ou perfil de rede social vai lhe revelar é que seus operários estão adoecendo pelo simples fato de que escola não é lugar de operários, escola não é fábrica de resultados e que fábrica-escola é uma crença que se confirma excelente para vestibular, mas tacanha demais para a realidade complexa que é formar de fato seres humanos prontos a questionar e modificar um meio cheio de injustiças engendradas e consolidadas por sistemas, a exemplo desse tão ao gosto do mestre de máquinas.

Entretanto, esses dados não se colocam em gráficos, esses dados são complicadores em sistemas que exigem resultados. E de mais a mais, o que se pode contra uma crença confirmada por estatísticas?

Sim, senhoras e senhores, o mestre de máquinas tem uma crença inabalável, confirmada por estatísticas, confirmada pela ação e palavras de seus operários mais devotos, confirmada pelas expectativas dos pais dos operários. O mestre de máquinas, acima de tudo e contra todos os argumentos, tem Razão...

As emoções e a subjetividade que fazem o ser um ente complexo, verdadeiro e único? Elas que fiquem para outro departamento.


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