sábado, 21 de janeiro de 2017

A loja de decifração de sonhos e a salvação do Egito





Os sonhos não parecem justos com os sonhadores, talvez por isso nem todos disponham-se a lembrar-se deles ou a levá-los a sério quando se veem, à revelia, confrontados com a lembrança persistente de uma cena carregada de sensações, que encanta ou assombra no meio da noite ou, às vezes, em um breve cochilo. No caso dos sonhos recorrentes, ainda que perturbem como verdadeiros enigmas que exigem ser desvendados, são poucos aqueles que se esforçam para investigar a fundo seu significado, subestimando-os como simples curiosidades e excentricidades da mente. O fato é que não é moda deste tempo aceitar os sonhos como sinais proféticos ou, ao menos, como enredos imagéticos dignos de interpretação. Nesse sentido, um faraó moderno dificilmente aventaria a hipótese de convocar à sua presença um estrangeiro desconhecido e de vida obscura para explicar-lhe o significado de um sonho com vacas gordas e magras. Assim, não é de se estranhar que um Egito qualquer da contemporaneidade venha a perecer por falta de quem sonhe e dê crédito ao enredo sonhado, bem como de outro que interprete com seriedade insólitas esquetes do inconsciente.



Por esse motivo, poucos acreditariam que uma loja dedicada à interpretação do universo onírico teria a mínima chance de  prosperar e fazer sucesso. Porém, a realidade mostrou-se outra.

O estabelecimento em questão foi aberto num pequeno e pacato bairro da metrópole. Perto de um asilo e de uma antiga vila operária, situou-se em uma casinha branca que praticamente não exigiu adaptações relevantes para o tipo de comércio a que lhe deram destino.

Ao que consta, seus idealizadores tiveram a ideia de fundá-lo a partir de um sonho que cada um teve, os quais, colocados em conjunto, formaram um mensagem fractal, poética, bela e verdadeira. Mas isso é uma outra história na qual não nos alongaremos.

A razão disse-lhes que o negócio era inviável; a intuição e os sonhos explicaram-lhes que uma empreitada daquelas era seu propósito e destino. Sabendo estar em um mundo em que a razão anda de mãos dadas com o desarrazoável, ficaram com os conselhos dos sentimentos inatos da inteligência. Ei-la, portanto, a casinha branca com uma pequena placa caprichada: Morpheus - Loja de Interpretação de Sonhos.

Assim, devotados leitores, para o público mais exigente, resumimos o porquê da existência da loja. Agora, conheçamos uma vida que foi afetada profundamente por esse tão incomum labor de destrinchar sonhos.

O caso refere-se a um homem de 43 anos. Tendo uma irmã mais nova, moradora da vila operária, tomou conhecimento da loja ao passar em frente a ela. Cético, como a educação e as experiências o fizeram, ao ler a placa do estabelecimento, riu-se sarcasticamente por dentro. 

"Mistificações aos montes, desde sempre e por toda parte" - pensou, não sem certa razão.

No alto da placa elíptica, contudo, fitou um desenho que lhe pareceu curioso e de bom gosto: a imagem pintada de Morfeu, figura masculina alada a dançar com ninfas.

Foi então que se lembrou de um sonho que o incomodava de vez em vez, principalmente quando relaxava das atividades do escritório de advocacia que herdara do pai.

Por ser digno de nota, aqui registrou-se o sonho.
Senhor F. via-se diante de uma mesa de cartas. Estava ele, a mulher, o filho de 17 anos e alguns funcionários de confiança. Começara um jogo. 

Ele recebera a primeira mão de cartas. Os naipes não lhe pareceram bons, mas o medo de pegar uma mão pior o fez desistir de se livrar das primeiras cartas. 

Na segunda rodada, foi obrigado a comprar uma carta da mesa. Veio-lhe então a carta do coringa. Mas era um coringa diferente. Era O Louco das cartas de tarô.

Ficou surpreso e ao mesmo tempo muito nervoso. Quem havia colocado aquela carta ali?

Não bastasse o incômodo, o desenho do cãozinho que acompanha a figura do Louco se distraiu com uma linda borboleta azul e começou a latir. Em seguida, o Louco olhou para o Senhor F., piscou e começou a assobiar e a fazer momices indo atrás da borboleta.

Entre encantado e contrariado, Senhor F. acordava sempre intrigado e confuso.

O "vagabundo" do tarô parecia saber algo a respeito de Senhor F. que ele mesmo não sabia. Isso definitivamente não era justo!

Perturbado com a lembrança do sonho, o homem acomodou-se embaixo de uma árvore quase em frente da casinha branca. Limpou o suor do rosto - era quase meio-dia. Uma estranha disposição tomou-lhe conta do espírito.

Ora, estando diante da loja de decifração de sonhos, algo ocorreu ao cético Senhor F. Ele bem que poderia pregar uma peça nO Louco. Se o Senhor F. descobrisse o que o debochado personagem sabia a respeito do próprio Senhor F., talvez não se sentisse mais nas mãos desse coringa indesejável, podendo finalmente expulsá-lo de seus sonhos.

Resolveu entrar na loja. Não queria demorar, tampouco ser flagrado pela irmã metendo-se com esoterices. Contudo, derrotar o Louco transformou-se de uma hora para outra em uma indelével obsessão. Enfim, como o Louco faria, num impulso da alma, adentrou pelos umbrais da casa e, passando pelo jardim lateral, surpreendeu-se com a força do próprio ímpeto que o colocara bem diante de uma mocinha de uns 14 anos - era filha de um dos sócios. 

Ela explicou-lhe que era necessário marcar um horário para acostar-se em uma poltrona especial, que havia em um dos cômodos da loja, para em seguida ouvir a interpretação que lhe seria dada a partir de um especialista em sonhos. Aquilo tomaria por volta de duas horas.

Advertiu-o que, após a consulta, era recomendável tirar o restante do dia para si.

Ele achou tudo muitíssimo estranho, porém, para derrotar figuras oníricas insólitas, talvez um pouco de excentricidade não seria um preço tão alto assim. Marcou um horário e foi-se sem demora almoçar na casa da irmã.

O dia tão esperado enfim chegara. Senhor F. pontualmente apareceu à casinha branca tutelada por Morfeu. Dessa vez foi atendido por um homem de face arredondada e de tez escura e brilhante, que, embora se vestisse à moda ocidental, inspirava a sensação de estar-se diante de um jovem guru indiano. Tinha um sotaque um pouco carregado que lhe reforçava a aura misteriosa. Contudo, em ligeira conversa, Senhor F. soube que seu intérprete de sonhos era um paquistanês que vivera bom tempo na Inglaterra.

Mas isso também é outra história.

Vamos ao que realmente importa.

Senhor F. sentou-se à poltrona. Sob a orientação do jovem, relatou o sonho inconveniente e depois relaxou profundamente.

Quando se viu bem relaxado, imagens do passado lhe vieram à mente. 

As cenas foram aparecendo em sequência: a avó materna que tinha um tarô de Marselha e dava consulta a vizinhos - por isso reconhecera a carta dO Louco. O insetário que ajudara o tio a fazer. Nele se via uma linda borboleta de azas azuis - foi quando Senhor F., à época um pré-adolescente, decidiu tornar-se biólogo. Por fim, o pai, mostrando-lhe o escritório de advocacia e argumentando por todos os meios que o Senhor F., aos 17 anos, deveria seguir a carreira do Direito. 

Após ouvir o relato do Senhor F., o paquistanês comentou: "Pois é, então seu pai já deu ao senhor logo na primeira rodada da vida uma mão de jogo que, mesmo longe de satisfatória, pareceu-lhe segura, não é mesmo? Então apareceu o cachorrinho perseguindo a borboleta, ou seja, o pequeno Senhor F. e seu desejo de seguir na carreira das Ciências Biológicas. Por fim, o desvairado Louco, o livre Louco, o desbocado Louco, dando-lhe uma piscadela e perguntando em silêncio: Você se lembra de seu ímpeto primeiro que nortearia toda a sua vida para um destino bem diferente do que ele é hoje?"

Queridos leitores, o Senhor F. sentiu um golpe violento de epifania, um golpe aterrador seguido de uma brisa suave que passou a acariciar seu rosto enquanto as lágrimas viam-lhe abundantemente. Fora a última visita do Louco.

O paquistanês ofereceu-lhe um lencinho e água. Deu-lhe um abraço, perguntou se estava suficientemente bem para voltar para casa.

Senhor F. saiu da loja de interpretação de sonhos. Havia mais quatro pessoas na salinha de espera. O negócio prosperava, o negócio era justo, o negócio era bom. 

Senhor F. estava entre desnorteado e aliviado.

O que se conta é que, dias depois, Senhor F. chamou o jovem A. para uma conversa franca de pai para filho.

O rapaz deixou a sala leve e emocionado. O pai voltara atrás a respeito da inscrição da faculdade do filho. A. não precisaria mais fazer Direito. 

Uma frase ouvida por A. naquela noite foi: "filho, cada um tem seu próprio caminho".

E Morfeu brincou com os sonhos do jovem A. levando-o a voar pela cidade iluminada.  O pobre, nos últimos três meses, sonhava frequentemente que cavava uma cova profunda onde ele mesmo deveria deitar-se. 







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