domingo, 22 de janeiro de 2017

A loja de decifração de sonhos e a linda Srta. D.





Como informamos sem muito destaque, quando Senhor F. saiu da loja de decifração de sonhos Morpheus, havia outros quatro clientes. Um deles, Srta. D., moça de 19 anos, aguardava com certa ansiedade sua vez.



Belíssima garota, de cabelos lisos negríssimos à altura do pescoço, piercings nas orelhas e tatuagens florais pelos braços e pernas, Srta. D., embora bela, desconhecia a força da própria beleza. Certamente ouvira inúmeras vezes comentários elogiosos e às vezes até desrespeitosos a respeito de sua aparência, contudo não parecia dar-lhes crédito. A força de sua personalidade certamente intimidava muitos outros garotos que não tinham coragem de aproximar-se dela, como deveria ser o caso de um jovem sentado na mesma sala da loja. O fato é que os poucos relacionamentos que ela tivera foram muito breves e sem paixão. No campo das ideias, o idílio era fulminante, mas no aspecto tátil, a alvura da pele de Srta. D. parecia ser equivalente à temperatura que dela se verificava. É válido notar que pouquíssimos são os amantes dotados de resiliência heroica à frieza de uma musa de pedra.



Enfim, leitores, os comentários sobre Srta. D. não são mera distração em favor deste relato, mas, à leitora ou ao leitor atento, são valiosas observações para o desfecho desta história.


Srta. D. já havia alguns anos tinha um sonho recorrente. Na situação onírica, ela testemunhava a seguinte cena: um garoto de uns 12 anos, de costas para ela e próximo ao parapeito de um abismo, lançava sacos de arroz, despejando os grãos virilmente no imenso espaço vazio entre as rochas.

Atrás do menino, uma mulher com os cabelos desgrenhados chorava cercada de pequenos papéis com números.

Então, surgia uma garotinha com as vestes sujas e rasgadas que, inicialmente, aproximava-se da mulher e pedia esmolas, sendo, contudo, ignorada. 

Srta. D., durante o sonho, incomodava-se a distância com a menina, enquanto pensava: "Não vê que a mulher está triste e completamente alheia ao mundo? O que essa menina quer?"



Sua indignação aumentava quando a garota pedinte se dirigia com mão estendida ao menino que lançava o arroz no abismo.



Pouco após sentar-se na poltrona especial da loja, orientada pelo jovem paquistanês interpretador de sonhos, Srta. D. fez exatamente esse relato que acabamos de antecipar. Então relaxou.



Nesse caso, o paquistanês foi obrigado a fazer algumas perguntas sobre os pais da menina. Diga-se de passagem que cada pergunta foi medida antes na régua do justo. O jovem não era um curioso, era um investigador.



Bem, senhores, ele, portanto, levou a termo seu intento.



Como ficou sabendo, a mãe de Srta. D. engravidara antes de casar-se; na verdade, o matrimônio fora frustrado por vontade alheia à dela. Tinha uma louca paixão pelo pai biológico da moça. Contudo, este, prometendo-lhe casar e assumir a filha, agiu "como um moleque" e simplesmente desapareceu no mundo - ou seja, nada de casamento nem chuvas de arroz. Srta. D. nasceu e cresceu sem pai. Sua mãe, pouco depois do abandono, desenvolveu certa compulsão por jogo. Acreditava que a combinação correta de números, jogada na loto certa, mudaria seu destino. Essa ideia fixa e outras semelhantes sempre a afastaram da filha, que, de certa forma, do ponto de vista afetivo, também viveu sem mãe.



O interpretador então comentou com Srta. D.: "Ah, como essa pequena Srta. D. - a menina pedinte - gostaria de uns afagos; como seria bom se lhe dessem atenção e carinho... Mas a atual Srta. D. não acredita que seja adequado mostrar as emoções e considera fracos os que demonstram precisar de pequenos gestos de amor."



Ao ouvir as palavras do jovem paquistanês de cara redonda e escura, Srta. D. levantou-se imediatamente da cadeira e se foi da loja. As lágrimas a acompanharam durante todo o percurso e não a abandonaram nem quando chegou em casa e trancou-se no quarto.


Durante um bom tempo refletiu se era de fato certo procurar saber o significado de um sonho. Ao que sabemos, a conclusão para sua pergunta demorou a chegar.



De nossa parte, acreditamos que as atividades da Morpheus são lícitas, corretas e úteis. O cliente seguinte, ao que deu a entender por seu último comentário, tem opinião semelhante.



Porém, essa é uma outra história.



A quem interessa o destino de Srta. D., apesar de este conto não ser fábula nem sermão, convém-nos lembrar uma fala presente nos evangelhos: "Conhece a Verdade e ela te libertará".

Leia o primeiro conto: "A loja de decifração de sonhos e a salvação do Egito".



















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