terça-feira, 24 de janeiro de 2017

A loja de decifração de sonhos e a melodia russa

Quando Srta. D. saiu correndo, o rapaz que a observava na sala da loja já estava para lá da metade de sua sessão com uma outra interpretadora de sonhos que atendia em um dos cômodos adaptados da bela casa branca.
O jovem de 23 anos, Senhor. Z., já havia, portanto, explicado seu curioso sonho àquela mulher negra de quadris largos, rosto gordo e brilhoso com um jeito maternal e bonachão. Seu vestido colorido à moda nigeriana e suas sandálias de tiras simples de couro, assim como o lenço azul com o qual prendia as tranças afro, compunham um todo que davam a ela um ar ao mesmo tempo de dignidade e autenticidade. Era realmente uma figura única, cuja presença em canto algum seria ignorada.
Se descrevemos assim a interpretadora, é porque saber suas características é elemento importante para o próximo conto.
De qualquer forma, os acontecimentos de agora não dizem respeito a ela, mas ao Senhor Z. Voltemo-nos a ele.
Como os caros leitores não puderam acompanhar o relato no momento em que foi feito, faremos aqui o resumo.
No sonho de Senhor Z., ele aparecia na sala de sua casa de costas para si mesmo. O que havia de aflitivo era o fato de metade de seu corpo estar dissolvida no tapete. Uma vez que ele só tinha o tronco apoiado no chão, sem contar com o auxílio das pernas, não podia mover-se. Para tornar a cena mais aflitiva, seus cabelos iam caindo um a um.
Diante dele, a avó, sentada no sofá, ouvia uma música. De repente, ela voltava-se para o Senhor Z. e lhe dizia: "Ele não cai". Ria-se jocosamente e repetia: "Ele não cai."
Então, Senhor Z. passava as mãos sobre os poucos cabelos que lhe restavam sobre a cabeça e voltava-se para o Senhor Z. que era o espectador do sonho, dizendo: "Babushka disse que ele não cai."
Verdadeiramente, se as imagens já não são agradáveis, pior ainda eram as sensações que despertavam em seu protagonista.
Agora façamos uma pausa e voltemos ao instante em que Senhor Z. estava na sala de espera e olhava a linda Srta. D.
É preciso esclarecer que o rapaz fitava a beleza da adolescente não com desejo, não com fascínio, não com encantamento, mas, sobretudo, com uma tristeza profunda, com uma aura de lamento e de autopiedade. As tatuagens  e atraente juventude de Srta. D. chamavam-lhe a atenção, contudo suas desgostosas reflexões sobre si mesmo conferiam-lhe uma expressão tão peculiar e distante que, ainda que seu olhar estivesse em Srta. D, esta não se sentia olhada.
Esse fato faz toda a diferença para entender o que Senhor Z. passou a ver na tela de sua mente após relaxar na cadeira diante de sua interpretadora de sonhos.
Veio-lhe a imagem terna da avó paterna, uma russa fugida da extinta URSS. Quando Senhor Z. era criança, a babushka - como ele a chamava - frequentemente ficava melancólica, principalmente ao ouvir uma fita cassete clandestina de Vladimir Visotsky. O vate russo, com a alma cheia de fúria e ímpeto, tornara-se famoso pelas letras de suas canções, cuja poesia remetia à ideia de uma essência oprimida sedenta de vida, que lutava entre o receio de se expor e o fluxo natural de sua essência, que o levaria a mostrar-se tal como era. Obviamente, esse conteúdo tocava fundo na alma do povo soviético de então. Às vezes, babushka era flagrada em um leve choro enquanto ouvia as canções de sua língua materna com versos tão conhecedores de sua alma.
Ela falecera fazia seis anos, deixando um grande vazio em Senhor Z. Fora a lição de ternura em sua vida, seu conselho de vó e seu colo de mãe. Era a doçura que a vida difícil aguça em uns ou amarga em outros. Já o pai de Senhor Z., um viúvo também russo, era esse amargor. Por isso, a vida era dura para o rapaz, difícil - não do ponto de vista material - e solitária, principalmente sem a mãe, a quem perdera na primeira infância, e sem a doce e amada babushka - a avozinha querida.
E agora ele, adulto, ali, em frente a uma decifradora de sonhos, só poderia estar perdido mesmo. Com razão seu pai não o levava a sério...
A interpretadora, com voz suave, interpelou-o: "E a melodia, você a reconhece, era sobre o quê?"
"Sim - alegrou-se - era a canção favorita de babushka. Falava de cavalos que galopam à beira de um abismo e fazem que o poeta, em vertigem, se desespere, temendo sucumbir à queda. Ele pede que os cavalos parem, contudo os animais teimam em continuar."
"Apesar disso, ele não cai, não é mesmo?" - prosseguiu a interpretadora.
"Na verdade não." - revelou o Senhor Z.
"Portanto, de acordo com essa canção, você sabe que ele não cairá, não é?" - a interpretadora olhou-o fixamente com o olhar firme e terno. Parecia que a própria babushka estava diante dele.
As lágrimas de Senhor Z. vieram: "Sim, agora eu sei, ficou claro para mim. Eu tenho de deixar aquela casa, viver a minha própria vida. Viver de verdade! Preciso me aceitar como sou, ainda que meu pai não queira mais falar comigo."
De repente, um silêncio.
Senhor Z. então prosseguiu. De fato não era mais necessário falar mais nada, porém, para ele, era importante.
"Hoje, enquanto esperava, havia uma bela jovem tatuada também na sala. Ela aguardava ser atendida por um outro interpretador. Olhei suas tatuagens e invejei-a profundamente. Ser livre, naquela idade, para fazer do corpo o que bem quisesse... Como fazer quando se ama alguém que tem o mesmo sexo que a gente?"
A interpretadora abraçou-o. 
"Ora - ela sorriu também emocionada. Quando a gente ama alguém do mesmo sexo ou de outro, alguém da mesma cor ou de outra, alguém com as mesmas ideias ou com outras opiniões, não importa... a gente só ama e deixa o amor ser o que ele é. Então os cavalos se acalmam e começam a respeitar quem os conduz, porque o cavaleiro os entende e os respeita também."
Ele sorriu e enxugou as lágrimas.
"Acho que ter vindo aqui salvou minha vida. Obrigado."
O que se sabe sobre o Senhor Z. é que ele se tornou um cara mais leve, apesar de o pai não aceitá-lo. Sua vida fluiu, seus cabelos não caíram e ele não se dissolveu no tapete de uma casa que não era para ele.








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