segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

A loja de decifração de sonhos e a visita de Iansã






No primeiro conto, informamos que, quando o Senhor F. saiu da loja de decifração de sonhos arrebatado por uma epifania, havia mais quatro pessoas na sala de espera. Eram elas a linda Srta. D., o Senhor Z. - ambos cujas histórias já relatamos - e outras duas personagens que procuraram a loja na tentativa de entender melhor as imagens oníricas - que encantavam uma delas, mas atormentavam a outra.



Foram juntas, isso porque são mãe e filha. Senhora J. e Srta. C. são inegavelmente uma fruto da outra, ou como diz o ditado antes de ser corrompido, a imagem da filha é "esculpida em carrara" a imagem da mãe. E até naquilo que não é, a menina tem se esforçado para ser. 

Contudo, se a genética aceita a similitude e até mimetiza minuciosamente a aparência física, no campo da alma, forçar as semelhanças pode ser bastante perigoso.

Deixemos, no entanto, as divagações para os filósofos, vamos ao ponto.

Mãe e filha são conhecidas no condomínio onde moram como Michelle Obama e Malia Obama. Assim foram apelidadas graças à compleição longilínea e demais características físicas que as aproximam muito das respectivas esposa e filha do ex-presidente dos EUA Barack Obama. Porém, mais do que a pele negra e as proporções elegantes do corpo, o apelido consagrou-se devido à semelhança dos cabelos alisados e tratados de Senhora J. e de Srta. C., cujo cuidado diário pessoal somado a atenção semanal de um cabeleireiro permitem mantê-los sempre lisos, sedosos e incrivelmente macios, assim como os da ex-primeira dama da grande nação norte-americana e os de sua filha mais velha.

São de fato os cabelos o grande orgulho de Senhora J. Srta. C deles tem somente um orgulho assimilado do da mãe por falta de outro referencial.

Por isso, quando ainda estavam na sala de espera da loja de decifração de sonhos e viram a interpretadora que viera atender o Senhor Z., vestida de modo peculiar e com longas tranças afro, houve das duas certo espanto. Senhora J. sentiu-se incomodada. Vieram-lhe pensamentos animosos; achou a interpretadora um pouco exibida, deslocada. Já a Srta. C sentiu-se fascinada e admirou o modo como as cores fortes do vestido daquela mulher destacavam-lhe não só as formas como a beleza brilhante de sua pele.

Por volta de cinco minutos após essa experiência quase sem importância, conheceram a interpretadora que cuidaria do caso de Srta. C. Trata-se da terceira e última sócia da loja, mãe daquela menina a quem nos referimos no primeiro conto.

Senhora J. encantou-se com a delicadeza, sobriedade e, por que não dizer, beleza daquela que lhes prestaria tão interessante serviço. A interpretadora era magra, de estatura baixa, pele alvíssima, cabelos muito lisos e loiros, com um olhar profundo e azul. Em nada negava sua descendência polonesa. Sua roupa, mais ocidental, impossível; vestia um tailleur cinza.  

É preciso destacar que conjunto roupa-pessoa fez que Senhora J. sentisse grande credibilidade na interpretadora. No entanto, é digno de nota que, como mãe, ficou um pouco contrariada quando a moça de uns trinta e poucos anos pediu-lhe para atender isoladamente a Srta. C. A "loirinha" esclareceu que o sigilo era essencial para se chegar a uma interpretação adequada do sonho. Portanto, a contragosto, Senhora J. consentiu.

Assim, Srta. C., mais à vontade, pôde sentar-se e contar seu atormentado e fantástico sonho.

Narrou que recentemente era frequente sonhar que via a mãe diante de uma pesada porta bloqueando sua passagem. A mãe dizia-lhe que era desnecessário ver o que havia para além daquela entrada. Srta. C. então se contentava com os argumentos rasos da mãe, até que um vento começava a soprar e a incomodar ambas. Parecia ser um sinal de tempestade.

Mais forte, a ventania fazia a porta escancarar-se com força, de modo que a mãe de Srta. C. não se visse mais em condições nem de fechá-la nem de impedir que a filha passasse por ela.

Após a porta, Srta. C. deparava-se com uma escada rústica, construída com pedaços grandes de pedras combinados com seixos. Descendo por ela, a adolescente de 16 anos entrava em uma estreita senzala, na qual via acorrentadas somente mulheres. De um lado, eram moças negras com os cabelos crespos desgrenhados; do outro, moças brancas, cujos lisos cabelos também estavam desgrenhados. Ela via a cena estupefata, não sabia o que fazer para ajudá-las.

Por fim, o vento que soprava por trás dela tornou-se cada vez mais intenso. Foi quando sentiu-se empurrada por uma mulher que dançava em rodopios, como se o soprar dos ventos obedecessem a suas vontades e caprichos. Era uma figura de corpo lindo, vigoroso. Os ombros e colo nus revelavam a cor de sua pele. Ela era negra, escura como Srta. C. jamais vira. Seu vestido era vermelho e esvoaçante, indo até os pés. Sobre a cabeça, um lenço também vermelho cobria a maior parte do cabelo que, no entanto, podia-se ver enquanto a fantástica entidade girava. Eram tranças lindas e longas, de uma natureza bela e atraente. Seus olhos não se viam, uma vez que uma franja de miçangas descia do lenço da cabeça cobrindo metade de sua face. Cada uma de suas mãos trazia um objeto que, no entanto, Srta. C. não soube identificar.

A mulher-entidade então começou a rodopiar em torno de Srta. C., elevando-se no ar. Finalmente, a adolescente acordava extasiada, sentia-se plena e feliz. 

Esse tipo de enredo não era estranho à interpretadora de sonhos. Ela mesma já sonhara certa vez com o deus eslavo Flyns, o que repercutiu profundamente em sua vida.

Lembrando-se da própria experiência, a interpretadora foi esclarecendo: "Srta. C, muitos adultos nos criam como acreditam ser o melhor para eles, como se fôssemos espelhos de quem são ou de como gostariam de ser. Dizem-nos 'sigam por este caminho; evitem aquele'. Essa é a primeira parte do seu sonho.

Apesar disso, cada pessoa não pode ser cópia senão de si mesma e está fortemente ligada a um passado coletivo que lhe confere identidade. Essa ancestralidade, por mais suprimida que seja, às vezes nos chama, nos convoca diante dela e nos obriga a passar a considerá-la em nossas vidas. Esse convite - chamemos assim - foi feito por essa deusa dos ventos. Eu não sei dizer quem é ela, mas cabe a você descobrir. Provavelmente, conhecê-la lhe trará alívio e disposição para sentir-se mais autêntica em sua vida.

Srta. C. aquiesceu com a cabeça. Sorrindo calmamente, explicou:

"Eu tenho pensado sobre muitas coisas que não concordo com minha mãe, mas que não consigo organizar em minha mente para verbalizar. Acho que nossos gostos são diferentes e alguns de nossos valores também, mas, como ela é mais velha e experiente, sinto que talvez eu não tenha razão. De qualquer forma, a senhora me ajudou muito com essa interpretação, acho que devo mudar algumas coisas em minha vida. Muito obrigada."

A garota mal escondia a alegria. Sentia um profundo alívio, como se seu sonho houvesse confirmado e dado novo impulso a suas ideias.

Senhora J., quase não aguentando de curiosidade, aguardava a filha. Saíram juntas da loja de decifração de sonhos. A moça disse que gostou e que realmente havia valido a pena ir consultar-se, contudo, mesmo interpelada insistentemente pela mãe sobre o que ela e a loirinha haviam conversado, Srta C. resumia dizendo "o sonho era sobre mudar algumas coisas da vida."

De fato, ela mudou. Apesar de continuar a mesma adolescente delicada, educada e de ótimo humor que sempre fora, começou a posicionar-se mais diante da vida. Não se preocupava mais com o que pudessem dizer dela. No condomínio, sua mãe continuou sendo conhecida como Michelle Obama, porém Malia ganhou nome próprio a partir do momento em que conheceram seu novo cabelo black, poderoso e inconfundível.

Carla era seu nome.

Começou a ser conhecida mais por suas opiniões do que pela aparência. Esta última parecia somente o complemento mais adequado à essência que animava Carla.



Nenhum comentário:

Postar um comentário