Bastardo. Reiteradas vezes o avô paterno o chamara assim.
Com cinco anos, ele não sabia o significado do termo, mas a agressividade com que o homem calvo e branco o pronunciava fazia-o adivinhar que não era boa coisa ser bastardo.
O pai, se ouvia, não fazia nada para desdizer o dito. Talvez fora dele mesmo que partira a acusação: o menino seria filho de outro homem que não ele. Assim teria justificado a separação precoce.
Se esse era o fato, no entanto, por que passara a buscar o garoto aos domingos?
Se a criança era sabidamente bastarda, por que levá-la à casa dos avós que não eram dela?
A ideia era fazê-la refém para vingar-se da suposta traição da ex-mulher?
O velho era rude não só com o garoto, era um demônio a expelir ranço pela boca. Sua esposa, pequenina, era calada, possivelmente cativa do tirano da casa. A criança via no olhar da avó uma dor maior do que sentira ao ser chamada de bastarda. A dor da mais velha acolhia a do mais novo.
O menino amuou-se.
Ao que se sabe, pai, madrasta e menino não ficaram mais do que meia hora na casa dos velhos. Lá estava também a irmã do pai, talvez indiferente ao que passava - quem se acostuma com violência desde a infância deixa de reconhecê-la em algumas de suas formas mais corriqueiras.
Por fim, no início da noite, o menino foi devolvido à mãe com a palavra que ganhara.
- Mãe, o que é bastardo?
Se a expressão "laços do passado" tem um sentido, pessoas separadas com filhos conhecem-no muito bem. É difícil resignar-se diante de um cativeiro simbólico que, frequentemente, assume a forma de uma criança. Quando o filho ou a filha possui traços físicos ou até o tom de voz do ex, a sensação de ser visitado pelas sombras dos enganos - geralmente da juventude - pode gerar aversão e, por esse motivo, culpa em quem é pai ou mãe.
A mãe exasperou-se. Onde o menino ouvira a palavra?
Já não bastava a ideia insuportável de encontrar o ex-marido - domingo sim domingo não -, de entregar o filho a ele, deixar que o filho se contaminasse com a fala e os modos dele, com os valores dele, com os trejeitos dele, agora tinha de ouvir uma palavra que vinha como acusação que, se não era familiar a ela, levantava suspeita de que a outra família a considerava adúltera?
Como explicar a palavra e o que ela pressupunha?
No contexto, ela indicaria a traição da mãe, ao menos uma relação sexual fora do casamento, uma vilania materna. A mãe amada não seria mais perfeita aos olhos do menino?
Soube que fora o avô a ofender seu filho. Irritou-se, odiou o velho. Vociferou. E o garoto sentiu que a questão era ainda pior do que parecia.
O fato de a mãe não ter sido adúltera e, portanto, de o garoto ser um legítimo filho e neto, tornavam tudo pior para a mulher. Contudo, o menino passou a ter dúvidas...
Seu pai era, aos domingos, um homem atencioso, simpático, criativo e bom. Não era pai? Era pai?
A mulher dele, ex-amante, era visivelmente contrariada com a presença da criança, um laço de um passado que não era o dela, mas que se enrolava em seus pés causando tropeços. De qualquer forma, se o garoto não era bastardo de sangue, estava sendo na criação. Ela parecia odiá-lo até nas pequenas sutilezas. O sacrifício de aturar, com disfarce, era para ela um ofício custoso. Não convencia.
O homem era submisso a ela. E os domingos eram assim: melhores longe dela, quando o pai era pleno. Porém, o pai era sempre triste, quase sempre dela.
O menino passou a desconfiar que o pai não era pai. A ideia se inculcara em sua cabeça. A mãe dizia que sim. Tudo era muito confuso. Quem era aquele homem afinal?
Domingo sim, domingo não. Essa passou a ser a contagem do tempo. Angústia na noite do sábado que precedia a visita. Angústia na noite do domingo após voltar da casa do pai.
Casas tão diferentes, regras tão diferentes, tratamento idem.
A mãe legítima não era de brincar, falava pouco com o menino e muito com muitas outras pessoas ao telefone. O pai era de inventar, falava com o garoto sempre ancorado na imaginação. Era a realidade insuportável demais?
Faltava ar ao menino com frequência. Passaram a dizer que era um menino doente.
Por que mãe e pai eram separados? Essa resposta não havia.
Quando a família do pai ou da madrasta tinham contato com o bastardo, o garoto sentia-se deslocado. Nada precisava ser dito.
Ele sabia exatamente que não estava em seu lugar.
Era doloroso para ele, certamente também o era para o pai. Mas será que não fora o próprio pai que dissera à família que o garoto era filho de sua ex-mulher com outro?
Na época não havia testes de DNA. Legalmente, o filho era dele. Inclusive, registrara-o com o nome que escolhera, contrariando a vontade da mãe legítima.
Os traços eram quase todos da mãe, e isso ajudava a aumentar a suspeita. (Não ver o pai nos traços do filho sempre é motivo de suspeita, o contrário, naturalmente, não.)
Os domingos de visita eram meio aversão, meio paixão. Deviam ser ao pai também.
O que ouvia de sua mulher entre os domingos?
O que ouvia de sua mulher entre os domingos?
O que o menino ouvia sobre seu pai entre os domingos?
Os lados antagonistas certamente se aliavam inconscientes.
A quem julgar?
O pai não era homem suficiente, o menino também não o era.
A dança de cinco anos entre os dois seguia uma música, e toda música está fadada a acabar. As sinfonias são mais longas, as cantigas não.
Quando o menino contava dez anos, nasceu uma menina.
Se havia empenho do pai em visitá-lo, a partir de então, perdeu o viço, a cor e talvez o sentido.
O garoto também já tinha padrasto.
Talvez o padrasto, que o visitava pelas palavras do menino, lembrava ao pai que ser pai é algo sério. Foi ele então ser pai de uma menina e, depois, de outra também. Certamente um pai maravilhoso - ele tinha o dom.
Do menino, foi só um pai bastardo, ilegítimo e infiel.
E se todas as mentiras para sustentar coesa uma família se transformam em um bordado na casa paterna, ei-la: é uma toalha grande e colorida - sempre ela - a enfeitar, aos domingos, a mesa de jantar.
Cada vez mais acredito que escrever alivia e cura a alma. Texto dolorido... sinto muito por essa criança.
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