quinta-feira, 18 de maio de 2017

Lugar de palavrão é em sala de aula!


"Chupa!!" - exclamou alto uma aluna de 15 anos para outra de mesma idade logo no início de minha aula. A palavra, que, apesar das poucas sílabas, possui status de palavrão, rompeu a monotonia corriqueira e criou uma expectativa na sala: afinal, o que eu, o professor, faria diante da situação? Seria o momento de reprimir ou refletir?

Fiz uma sugestão:

"Fulana, o ideal seria que, ao utilizar uma expressão como essa, você a complementasse com algo como: chupa essa manga!"

Ela riu. Sua amiga, a que deveria chupar alguma coisa, perguntou-me sobre o porquê de se colocar um complemento vitaminado como aquele. Ela certamente intuía que a expressão perdia a força e, como percebi pouco depois, mesmo consciente de que a palavra indicava uma relação poder - humilhação, não compreendia exatamente o significado mais profundo do que dissera. Fiquei, por esse motivo, surpreso e desapontado.

A primeira garota falara com tanta autoridade o palavrão, e a outra entendera com tamanha propriedade a desforra da amiga, que foi de espantar a inocência de ambas, que ignoravam a vulgaridade do imperativo que a palavra chupar adquirira no contexto.

Foi então que, de súbito, lembrei-me de quando estava na faculdade e pude ir a uma palestra do renomado professor Dino Preti. Seu tema era ao mesmo tempo interessante e polêmico: palavrões.

Amparado pelo conhecimento do mestre e amante do improviso e do inusitado, não precisei ponderar muito para conduzir a aula por um caminho novo.

Antes de prosseguirmos, porém, como não quero ferir a sensibilidade dos leitores, aviso: daqui para diante, o texto mencionará questões ligadas a comportamento sexual e cultura.

Aos que possam me julgar indecoroso por abordar o tema com adolescentes, desculpem-me, mas nada que eu possa falar a eles poderá ser mais escandalizante do que aquilo que veem e ouvem na TV aberta ou em qualquer rápida busca na internet. Então, entre repreensão e esclarecimento, escolhi a segunda alternativa.

Agarrei a oportunidade pelo rabo:

"Fulana, ainda bem que você disse isso. Faz tempo que eu gostaria de conversar com vocês sobre essa importante questão da nossa cultura."

A menina e a sala toda naturalmente estranharam.

Continuei:

"Quando fulana disse 'chupa', é óbvio que ficou subentendida uma prática sexual..."

Uma delas duvidou de minha afirmação, mas logo outras pessoas da sala confirmaram: "mas claro que é, fulana".

Ela ponderou um pouco e concordou: "É verdade..."

Continuei explicando que, infelizmente, em nossa sociedade, existe uma cultura que associa determinadas práticas sexuais a relações de poder, nas quais quem é favorecido adquire um status de superioridade. O outro, no entanto, que beneficiou sexualmente o primeiro,  fica na condição de humilhado. É desse modo que se criam tabus em relação ao sexo, os quais nos acompanham pela vida toda. A ideia de agredir por meio do ato sexual ou de questões envolvendo a sexualidade também se perpetuam, fazendo que a expressão do erotismo de cada um - que poderia ser saudável - ganhe força de perversão.

Portanto, se repararmos com espírito científico, palavrões expressam frequentemente condenações a certos comportamentos e características individuais ou coletivas e reforçam preconceitos que deveriam ser combatidos. Quando, por exemplo, a palavra gordo, anão, puta, cu (parte de trás), viado, babaca (vulva ou cheiro dela característico) e expressões como filho da puta, chupa rola (pomba) e tantas outras - presentes no cotidiano escolar para quem quiser ouvir - são endereçadas a alguém, transmite-se uma herança cultural lamentável e, nesse sentido, o palavreado chulo - como representação de uma ideologia - seria muito mais condenável do que a agressividade a ele associada. 

(Observem que etimologicamente cu, palavra usada corriqueiramente em Portugal, é menos preocupante que babaca, palavra de origem bantu, tabu 50 anos atrás.)

Se ser gay é uma condição da orientação sexual de alguém; ser gordo, uma condição física; ser anão também; aceitar esses adjetivos como material para ofender um indivíduo equivale ao desejo até inconsciente de estigmatizar pessoas e grupos, de modo que o ofensor e testemunhas coniventes da ofensa deleitem-se com uma pretensa superioridade outorgada por condições sobre as quais não se tem controle. Nesse sentido, comentários homofóbicos e gordofóbicos, por exemplo, em nada diferem das chamadas injúrias raciais, muito comuns também na escola, embora atualmente, por causa de uma lei de 1989, ofensas desse tipo, quando públicas, escandalizem os mesmos alunos que chamam outros de viado (talvez de transviado). Ou seja, vivemos um paradoxo na hora de injuriar: crioulo (negro nascido na América) não pode mais, viado pode. Por quê?

Devem valer os dois? Ambos são condenáveis? Ou simplesmente: ”que se foda"? (Foda: mais uma vez o sexo em um contexto de violência)

De fato, creio que seja algo a se pensar e não vou tomar mais o seu tempo, pois entendo que meu ponto já ficou claro.

Portanto, resumindo tudo: a aula foi mais ou menos nesse tom, e até agora não me senti convencido de ter agido errado. Preciso também confessar que uso alguns palavrões. Quando o faço, assim como tantas pessoas, obviamente não me atenho a uma reflexão sociolinguística a respeito de seu uso, eles simplesmente escapam - mas nunca tendo alguém, uma condição física ou o que o valha como alvo. 
De qualquer forma, como disse Freud, o pai da Psicanálise, "às vezes um charuto é só um charuto", porém ele sabia, em essência, que um charuto representava muito mais do que isso, quanto mais um palavrão.



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