quinta-feira, 4 de maio de 2017

Crise dos 40: o uivo de um lobo

Crise dos 40: o uivo de um lobo

Um vento gelando a espinha anuncia uma nova estação. Os sinais vão se formando mais claros: a lua cheia começa a minguar, ainda que imperceptível a olhos menos acostumados a vê-la. É viceral, toda a natureza se converte em um irresistível chamado. O lobo deixa o bando e, dirigindo-se ao alto de um desfiladeiro, entoa um uivo longo e choroso.

O som ecoa por todas as redondezas da mata escura de seu habitat. Prenúncio de tragédia?

Talvez.

Algo está em gestação nesse mamífero tão singular, e a gestação sempre é uma transição intensa que protagoniza milagres ou tragédias.

De qualquer forma, que entendo eu de lobos?

Na verdade, nada. A metáfora é roubada de expressão corriqueira, que encontrou no símbolo do Canis lupus um modo de referir-se a momento tão específico por que passa o homem cuja idade ronda, para mais ou para menos, a faixa dos quarenta. Esse que vos escreve, inclusive, está justamente agora a intercalar uivos e fôlegos à beira de um alto penhasco.

Se você também está se transformando nesse nobre e temido animal, creio que é importante que saiba, estamos transitando por uma fase bastante crítica, que pode fazer feridos e ferir-nos também. Contudo, se conseguirmos fazer um esforço para olhar um pouco além das aparências, é possível que, com certa estratégia e sorte, consigamos dar as costas para o penhasco e voltar ao convívio da matilha em melhor estado do que quando a deixamos.

Antes de prosseguir, já deveria ter me adiantado, este texto, acima de tudo, destina-se a homens uivantes, embora acredite que qualquer pessoa possa se beneficiar de alguma maneira com seu conteúdo.

Vamos lá então!

Pois bem, lobos, estamos cada um de nós em seu próprio território, assim manda nossa lei. Sendo machos lupus, aprendemos a curtir nossas dores sozinhos, essa sempre foi uma lei sagrada para nós, é o peso inexorável de nossa condição na espécie. Foi assim com os lobos que vieram antes de nós, parece ser assim conosco agora, espero que não seja assim com as gerações futuras. Leis da selva podem ser modificadas?

Preciso ir direto ao ponto, homens como nós somos assim: sem rodeios.

Atingimos uma idade em que passamos a colocar a vida em nova perspectiva, conquistamos uma bagagem significativa e, conscientes ou não, procuramos chegar à conclusão de um processo que chamarei de grande síntese. Ela deve consistir em um confronto entre os anseios da juventude e as demandas de que demos conta na fase adulta. Procuramos agora o saldo dessa equação, simples ou complexa, conforme nossa história tão singular.

Acredito que quanto mais essas demandas distanciaram-se dos anseios originais, mesmo dos menosprezados ou inconfessáveis, maior e mais intenso tende a ser o uivo dado no desfiladeiro, ou seja, a crise que nos atinge em cheio na derradeira hora de pesar a vida na balança de nossa própria verdade. Os pesos que usaremos nela são oscilantes em massa e dizem respeito a valores, crenças que norteiam o sentido que damos à nossa vida, crenças sobre nós mesmos que superamos ou estamos em via de superar, bem como o peso que atribuímos a determinadas situações pelas quais passamos e não estaríamos mais dispostos a passar.

Começa então o processo de pesagem, são os primeiros sinais de crise. 

Nossas energias praticamente mobilizam-se em função desse evento solene. Desejos e vontades reprimidas virão à tona, às vezes de modo a deixar-nos desconcertados e abismados com sua força inebriante ou avassaladora. Nosso conflito interior eclodirá, inesperada e inconvenientemente, para fora de nós, e pode originar outros conflitos, de modo a envolver esposa, filhos, familiares e colegas de trabalho.

Poderemos finalmente fazer a tatuagem - que adiamos ou que não podíamos fazer - ou comprar a moto ou carro que deixamos de ter para podermos mobiliar a casa de 15 anos atrás.

Se nos sentirmos mais seguros e atraentes com investidas de mulheres mais jovens, a tentação poderá nos deixar febris, e avaliaremos com muita dificuldade que limites devemos respeitar e quais deles não há mal em ultrapassar.

Se tivermos religião, talvez a ela dirijamos certa fúria. Questionaremos as regras invisíveis e sua realidade transcendente. Somos lobos que se perguntarão se o papel de ovelhas ainda serviria para nós.

O casamento passará pelo crivo lupino, alguns de nossos amigos de bando irão se separar - talvez nós mesmos - desejosos de curtir uma vida de solteiro. Quem sabe a ideia de maior liberdade torne-se irresistível, aquela liberdade da qual abdicamos por pressão social ou pela falsa crença - comum na juventude - de que realizar-se na vida era casar-se. Alguns de nós vestiram o terno do casamento como uma farda de soldado e, de repente, no meio da guerra, passaram a questionar-se sobre o sentido dela. É claro que as boas ou más experiências contarão, cada experiência de vida é única. Contudo, os desejos de experiências não vividas que, ao invés de superados, foram suprimidos, cobrarão um alto preço.

O lobo que chegou solteiro a essa idade talvez arrume um casamento relâmpago. As promessas da vida de solteiro talvez tenham se cumprido em parte, porém a ideia de envelhecer sem uma companhia para a qual a amizade seja mais importante do que o sexo pode começar a se tornar um martírio. 

Os filhos, ah, os filhos?

Deveria ter tido filhos? Agora os quero.

Tive filhos sem os querer? Já estão crescidos ou quase lá. Não tenho mais obrigação com eles.

Tenho filhos adolescentes com uma vida melhor do que eu tive? Talvez, sem perceber, eu comece a competir com eles.

Quem pode julgar desejos, experiências e tudo que foge à racionalidade e planejamentos? 

Nos metemos em empregos e profissões aos quais tivemos de sacrificar nossos velhos valores e ideais? Pedir demissão ou mudar de profissão pode ser uma saída, quase uma fuga de algo que, inadvertidamente, sentimo-nos agora incapazes de suportar.

É talvez penoso, mas sábio admitir: Lobos, chegamos a uma fase em que já não podemos negar que muitos de nossos planos não deram certo, algumas experiências demonstraram que certas atitudes do passado estavam equivocadas e sentimos, exatamente agora, uma força acachapante que nos oprime com uma terrível dúvida: que estilo de vida assumir daqui para frente?

Para piorar, dificilmente nesta idade, nossas decisões não afetarão profundamente outras pessoas. 

E se a mulher com quem estivermos também for uma loba a uivar em outro desfiladeiro? 

Momentos de tristeza e introspecção serão inevitáveis...

É, senhores, a crise, seja ela uma brisa ou ventania, de fato, tornou-se incomodamente presente e até dolorosa. A mim, buscar compreendê-la, para enfrentá-la, parece a melhor alternativa.

Penso, portanto, que posso compartilhar um método que tenho aplicado durante meus uivos. Aos lobos interessados, deixo um roteiro. Espero que possa lhes servir como tem servido a mim.

Diante do desfiladeiro, instado pela lua a uivar, parece-me importante:

- Reconhecer sem defesas o momento de crise;

- Ponderar sobre as consequências das ações que, por impulso, desejemos tomar;

- Reconhecer os sentimentos e a importância das pessoas que podem sofrer as consequências de nossas decisões;

- Deixar o uivo um instante para informar aqueles que fazem parte de nossa intimidade que vivemos um momento delicado em que, simplesmente, precisamos uivar e estamos enfrentando uma crise - essa parte costuma ser muito difícil para nós, lobos, principalmente os que se acreditaram superiores a qualquer tipo de demanda emocional desarrazoada.

- Conversar sobre a nossa crise ajuda a aliviá-la; terapia pode ser um ótimo recurso, mas muitos de nós, lobos autossuficientes, não acreditamos nisso. Então, tudo bem, procurar amigos de confiança e conversar sobre as próprias emoções e conflitos consiste em um ato de coragem que pode ter um efeito alentador;

- Confiar que essa é mais uma fase, passamos por outras crises antes. Dependendo de nossas escolhas, sairemos desse desfiladeiro mais fortes e autoconfiantes.

Creio oportuno lembrar que alguns filósofos do passado afirmavam que a maior sabedoria da vida consiste em se preparar durante toda a existência para o derradeiro momento da morte. Toda crise é uma espécie de morte, essa é só mais uma. Cabe a nós a escolha de como morrer para, enfim, renascermos mais fortes, sábios e sensíveis. Sinceramente, espero que tenhamos essa capacidade.

Um longo uivo na noite aos irmãos de matilha!






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